ANÁLISE AO ARGUMENTO POLÍTICO DE ROBERT BLY

EuroPROFEM - The European Men Profeminist Network http://www.europrofem.org 

 

Précédente ] Accueil ] Remonter ] Suivante ]

 

ANÁLISE AO ARGUMENTO POLÍTICO DE ROBERT BLY

Tal como referi, a presente monografia tem por objectivo compreender as causas que levaram ao aparecimento de Iron John: A Book About Men, uma obra literária cuja polémica ainda se mantém actual. Polémica essa devida à própria figura do seu autor, Robert Bly, e à prática por ele implantada no movimento mitopoético. Nesse sentido, compreender as motivações de Robert Bly para escrever este livro é compreender e descodificar o argumento político nele expresso.

No capitulo anterior tive a oportunidade de abordar o impacto dos movimentos feminista e gay na alteração das formas de percepcionar o género e a masculinidade dominante. A acção destes dois grupos foi determinante para que a reflexão sobre o papel e o poder dos homens na sociedade se difundisse pelos campos político, económico, social, intelectual, académico e o dos meios de comunicação social. Esta difusão deu origem a uma forma de pensar que, entre outros aspectos, resultou no movimento masculino. E é no seio deste movimento, das suas ideologias e práticas, que é possível enquadrar autor e obra e, assim, compreender as motivações de Robert Bly ao escrever Iron John.

O feminismo americano dos anos 60 era defendido por mulheres e homens, muitos deles casados com feministas, como foi o caso de Bly. Havia uma luta comum que, embora sob o nome de feminismo, unia os dois sexos, uma luta pela alteração da sociedade americana. Contudo, a grande separação deu-se na década seguinte com a exacerbação das críticas feministas aos homens, críticas essas que foram reforçadas pelo impacto do movimento gay na luta contra o modelo de família vigente e, mais concretamente, contra a masculinidade hegemónica.

Assim, os anos 70 assistiram surgimento do movimento masculino, que desde o início se dividiu em dois grandes blocos. De um lado os homens que se sentiram mais atingidos pelas críticas feministas e pelos gays, os anti-feministas (Este bloco compreende os seguintes grupos: Mythopoetic Men's Movement, Promisse Keepers, Men's Rights Movement e Men's Liberation Movement), do outro os pró-feministas (Este bloco compreende os seguintes grupos: Radical Feminist Men, Socialist Feminist Men, Racialized Masculinity Politics e Gay Liberation.) marcados pelo socialismo feminista.

Pró e anti-feministas adoptam comportamentos totalmente distintos, e é em parte nesta distinção do discurso e da prática que se podem compreender algumas das opções tomadas por Robert Bly ao estruturar o seu argumento político da forma como o fez.

Em linhas gerais, os pró-feministas defendem a criação de uma nova postura masculina que leve em consideração a diversidade, a existência de mais que um modelo de masculinidade. Isto porque entendem o género como cultural e situacional, embora não ignorem o peso da biologia. O género é definido numa determinada sociedade num tempo e espaço precisos. A raça e a opção sexual são outros dois factores que devem estar aliados a esta percepção do género e que devem ser igualmente tidos em conta na definição das identidades masculinas.

Tal como os anti-feministas, estes têm a noção de que o modelo de masculinidade resultante de um sistema capitalista e patriarcal está em crise. Contudo, demarcam-se dos anti-feministas por entenderem que as críticas feitas pelas feministas, pelo movimento gay e pelas demais minorias, ao patriarcado e à opressão do grupo masculino dominante devem ser tidas em consideração. Séculos de patriarcado conduziram a sociedade americana a uma situação onde muitos são os marginalizados e poucos os favorecidos. Ante a luta pela redistribuição do poder e as alterações no mercado de trabalho, alguns homens sentiram-se inseguros, uma vez que já não se pode falar, de forma una, clara e inequívoca, no papel social masculino.

Neste sentido, os pró-feministas advogam uma acção política real, que defenda a queda de determinadas imagens masculinas castrantes e opressoras tais como as baseadas na valorização dos atributos: racionalidade, poder, força e violência.

Quanto aos anti-feministas, estes advogam o oposto. Preocupados em defender uma posição conquistada pela masculinidade dominante e ignorando todo o movimento social de contestação, lutam pela manutenção de um modelo masculino ao qual estão associados valores como: a racionalidade, o poder, a virilidade e a dominação (política, económica e física). Desta forma torna-se evidente que a percepção do género não pode partir das mesmas premissas que os pró-feministas, dado que possuem objectivos diametralmente opostos.

Dominados por um sentimento de reacção ao feminismo, defendem o género como assente no essencialismo, onde a biologia e os arquétipos Jungianos estruturam o que é ser homem e ser mulher, embora não ignorem a cultura como componente da identidade de género. Entendem-na como mera responsável pela diversidade (aparente) dos modelos sexuais em diferentes sociedades. A cultura nada mais é senão um fino manto que encobre os caracteres identitários comuns a todos os homens e a todas as mulheres, independente do espaço e do tempo. Daí que para eles a superação da crise masculina deva passar pela auto-terapia, uma vez que os homens devem reencontrar a verdadeira masculinidade, a essência masculina, que para este grupo jaz perdida no interior da psique dos homens.

A percepção de que já não havia mais um script definido para ambos os sexos, o confronto com a feminização do mercado de trabalho e as demais alterações sócio-económicas geraram um sentimento de insegurança nos americanos e mais especificamente em um grupo masculino particularmente: os brancos, classe média e heterossexuais. Alterações sociais próprias da modernidade tardia.

Num contexto dinâmico como este, a identidade está sujeita a constantes avaliações e reavaliações, tornando-se reflexiva. Se, tal como afirma Giddens (Giddens, Anthony. 1994), a tradição é marcada pela estabilidade, em termos de papéis sociais e, portanto, de identidade, o mesmo não se verifica no contexto da modernidade, no qual a reflexividade desencadeia um processo de auto-questionamento, gerador de insegurança e ansiedade. A necessidade de romper com a hegemonia masculina deve-se ao próprio efeito da modernidade, e em termos mais concretos, a uma alteração nos sistemas económicos de produção e nos papéis dos sexos nesse sistema, dada a participação cada vez mais significativa da mulher no mercado de trabalho e, por conseguinte, ao aumento da sua consciência enquanto ser social. Quanto mais as mulheres tomaram consciência dos seus papéis e das suas posições na sociedade americana, mais amadureciam enquanto cidadãs (o mesmo ocorria às outras minorias que pouco a pouco criticavam o sistema) e maior era a necessidade de avaliar todo o sistema de valores (reais e simbólicos) e de poder que caracterizavam esta sociedade. Este processo resultou, para os homens, num despertar de consciências que levou ao surgimento do movimento masculino. Nesse momento os homens passaram a ver-se como um grupo social e não só como indivíduos.

When he looked in the mirror in the morning, he saw, as he put it, "a human being: universally generalizable". … As a white man, he was able not to think about the ways in which gender and race had affected his experiences. There is a sociological explanation for this blind spot in our thinking: … White people rarely think of themselves as ‘raced’ people, rarely think of race as a central element in their experience. … Similarly, middle-class people do not acknowledge the importance of social class as an organizing principle of social life. … Men often think of themselves as genderless, as if gender did not matter in the daily experiences of our lives. Certanly, we can see the biological sex of individuals, but we rarely understand the ways in which gender is enacted in our daily lives. (Kimmell, Michael. 1995: xiv-xv)

Embora a análise do impacto da modernidade sobre os indivíduos, sobre a forma como as pessoas moldam e definem as suas identidades, e do movimento masculino na criação de novos modelos e imagens masculinas seja extremamente aliciante e sedutora, opto por apenas referir os aspectos mais gerais e que considerei básicos para a compreensão do fenómeno Robert Bly. Isto porque o meu objectivo é descodificar Iron John e analisar as intenções de Bly ao escrever este livro, e não propriamente a análise deste fenómeno nos dois contextos supracitados, embora essa análise possa vir a ser um caminho viável para uma futura investigação.

No capítulo sobre o debate mediático em torno do autor e da obra referi o impacto da biografia de Bly e a forma como "nasceu" Iron John: A Book About Men. Aqui pretendo ir mais além, analisando os aspectos centrais do argumento de Bly expresso neste livro: a forma de acção política, a reificação da hegemonia masculina, e o anti-feminismo.

I. A forma de acção política:

Ao contrapor pró e anti-feministas referi que os últimos defendem uma acção política centrada no doutrinamento dos homens em crise e baseada na auto-terapia. A auto-terapia pretende, em termos concretos, a produção de um modo de pensar que leve os mitopoetas a sentirem-se bem com eles mesmos e com o modelo de masculinidade que defendem. Pretensões que Bly transpõe para o livro sob a forma de um rito de iniciação masculino, uma jornada psicológica construída em paralelo com o conto de Iron John. Um ritual de iniciação masculino que é a criação de um processo psicológico que visa reconciliar um grupo de homens especifico com os seus valores básicos e libertá-los das culpas que lhes são imputadas. Por isso classifico Iron John como um livro de auto-ajuda com inspiração New Age. Ainda mais que tanto a literatura de auto-ajuda como o New Age fornecem elementos importantes para se compreender onde Bly se inspirou para criar o ritual de iniciação masculina que descreve.

Os livros de auto-ajuda:

Os livros de auto-ajuda, ou self-help books, assumem, no contexto da modernidade tardia, a função de auxiliar o leitor a compreender-se e ao meio envolvente a partir da análise que o autor faz da realidade social, o qual propõe um conjunto de formas de comportamento com vista a auxiliar o leitor na sua tentativa de adaptação à realidade social.

Autores como Robert Bly tomam para si a função de intérpretes do real (social e individual), recorrem às ciências sociais (a psicologia, a antropologia e a sociologia) e à biologia para criar um discurso socialmente válido, movendo-se num triângulo cujos vértices são: o senso comum, a análise científica da construção da identidade e o seu próprio discurso. Estes livros estimuladores da auto-ajuda, ou do amor próprio, têm fomentado, através da popularização da psicologia, uma série de práticas a que Gloria Steinem (autora de Revolution From Within - a book of self-esteem) denominou biblioterapia. Segundo esta autora

A lot of self-help books put even more of a burden on the individual. I couldn’t tell whether they were protecting the status quo or just had no faith in anyone’s ability to change it, but they promised readers an internal power that would, in the words of one of them, "bind up mental and physical wounds, proclaim liberty to the fear – ridden mind, and liberate you completely from the limitations of poverty, failure, misery, lack, and frustration". (Steinem, Gloria. 1994: 10. O livro referido é: Dr. Joseph Murphy, The Power of your subconscious Mind, New York, Bantam Books. 1982: 9-10)

As feridas físicas e mentais, a libertação dos medos, e dos sentimentos frustrantes causadores do sentimento de inferioridade, são aspectos presentes nos livros de auto-ajuda e em Iron John. Bly ao abordar a questão da figura paterna foca a ferida causada pela sua ausência na psique do filho, ao referir a estrada de cinzas defende que este é um período de introspecção no qual o iniciando deve descer ao grau mais profundo do seu subconsciente e trazer à tona todos os sentimentos negativos, a fim de superar as suas causas; e no final do processo de recuperação da masculinidade é a ferida causada pelos homens do Rei que encerram todo o processo.

Contudo, aos olhos do meio académico os livros de auto-ajuda são entendidos como livros de psicologia popular, sociologia barata e pseudo antropologia, exactamente pelo uso que os seus autores fazem das teorias científicas. Bly, consciente desta imagem pouco credível tenta defender o seu livro ao responder a George Myers que

Things get canned, you know. Someone said to me "why aren't there more direct listed in Iron John like 'men should do these 10 things'". Those things aren't listed because I wrote it as if it was a poem, and in a poem you never lay out this,m this, and this. You give them images, and people deduce what is to be done. (Myers, George. 1992:414)

Embora Iron John possa ser descrito como a superação da crise masculina em 9 capítulos, dada a sua estrutura e o tipo de discurso empregue, a razão pela qual Bly nega que se trata de um livro de auto-ajuda prende-se com a necessidade do autor em criar um espaço de actuação próprio, que o demarque dos livros pseudo-académicos e que o aproxime deste meio intelectual e semi-endeusado pela sociedade que é o meio académico. Bly quer para si um status próprio.

O New Age:

Em Iron John: A Book About Men o rito elaborado por Bly, a opção pela auto-terapia assente numa revalorização da mitologia clássica, na espiritualidade oriental e dos índios nativos dos Estados Unidos, e a valorização do individualismo, são exemplos da forma de agir própria do New Age.

O New Age é um fenómeno bastante complexo e pluri-facetado que desde os anos 60 tem marcado a sociedade americana, embora as suas raízes se encontrem nos primórdios da colonização dos Estados Unidos da América.

Sendo o produto da cultura norte-americana é a expressão corrente da tradição do antigo oculto, influenciado por dois acontecimentos do pós Segunda Grande Guerra: o surgimento da espiritualidade oriental na América e os novos desenvolvimentos na psicologia, relacionados com a religião, como é o caso da psicologia Jungiana. A tudo isto soma-se a revalorização de certas tradições judaico-cristãs, da religiosidade dos índios nativos dos Estados Unidos e das lendas, mitologias e rituais associados à cultura celta e aos povos primitivos, resultando numa colagem de religiosidades própria de um contexto de modernidade tardia.

A década de 1960 foi uma época de consciencialização que viu ressurgir o movimento feminista, o movimento homossexual, o movimento dos negros e de outras minorias étnicas. Todos estes grupos tinham uma proposta em comum: mudar a actual forma de estar na sociedade e trabalhar para uma nova forma de viver, uma busca de alternativas que ultrapassem o desencanto por que passavam os Estado Unidos. Foi também a década da contra-cultura e do movimento hippie. Bly, como os demais americanos, foi influenciado por esta forma de ver e compreender o mundo.

Nos anos 90 o desencanto e a crise de valores sentida pelos americanos, atribuída ao materialismo dos anos 80 e à era Reagan, resultaram na retoma de alguns valores da geração dos anos 60. As práticas, os objectivos, e a ideologia da contra cultura não desapareceram, mas os seus métodos e as suas formas de implementação mudaram drasticamente. Os hippies, agora anos mais velhos, não abandonaram a sua espiritualidade oriental e a visão panteísta, simplesmente conciliaram-na com certas convenções sociais. Sem modificar a sua forma de ver o mundo, eles voltaram-se para o seu íntimo na busca de uma transformação pessoal, o que é o objectivo básico do New Age. O individualismo e a auto-reflexão foram terreno férteis para o desenvolvimento da psicologia.

Robert Bly e muitos New Agers americanos partilham da ideia de Jung de que a forma de "salvar" as sociedades ocidentais da tirania do cientificismo está na psicologia. Para Jung, a psicologia vem substituir a religião, que ante as alterações sociais e um cenário de crescente individualismo, em que as pessoas se tornam responsáveis pelas suas próprias vidas, não tem sido capaz de responder às necessidades humanas. Jung afirma que o espírito moderno esqueceu as antigas verdades espirituais e míticas da Idade Média e dos povos primitivos, "esquecendo-se por completo de que carregamos em nós o passado escondido nos desvãos dos arranha-céus da nossa consciência racional". (Jung, C. G. Psicologia e religião. Trad. Pe Dom Mateus Ramalho Rocha. Col. Obras completas de C. G. Jung, vol. XI/1. Petrópolis: Vozes. 1978: 39-40)

No entanto Anthony Giddens (Giddens, Anthony. 1994) vai além e afirma que o contributo específico da psicologia reside no facto desta oferecer um cenário e um fundo férteis de recursos teóricos e conceptuais para a ordenação descontínua e reflexiva do eu. Deste modo, num esquema terapêutico, de tipo psicanalítico ou não, os indivíduos estarão aptos, em princípio, a articular o passado com as exigências do presente, consolidando uma história emocional relativamente realizada.

Mas a opção por Jung, em detrimento de outros psicólogos seus contemporâneos, deve-se ao impacto e à consonância desta teoria na ideologia da contra cultura reinante nos Estados Unidos nos anos 60. Num momento histórico em que muitos dos americanos buscavam as suas raízes Jung forneceu os conceitos operacionais através dos quais os indivíduos poderiam encontrar o porquê de tal necessidade.

Em termos da análise sobre a masculinidade, os conceitos Jungianos de inconsciente colectivo, arquétipo, anima e animus, tornam-se essenciais pois permitem compreender o que está por de trás das noções de essência masculina ou de verdadeira masculinidade utilizadas por Bly.

Jung subdivide o inconsciente em pessoal e colectivo, de acordo com a natureza do que nele se contém. O inconsciente pessoal tem uma vertente histórica baseada na vivência do indivíduo, no acumular das suas experiências ao longo da vida; e o inconsciente colectivo é composto pelas forças instintivas, pelas vivências que a cultura acumulou na sua carga genética. Através deste conceito, Jung explica a razão da existência de um material psíquico inconsciente que se manifesta tanto nos sonhos como no que habitualmente consideramos o instinto. O conceito de arquétipo é uma derivação do inconsciente colectivo pois

do mesmo modo que os nossos sonhos são constituídos de material preponderantemente colectivo, assim também na mitologia e no folclore dos diversos povos certos temas se repetem de forma quase idêntica. A estes temas dei o nome de arquétipo, designação com a qual indico certas formas e imagens da natureza colectiva que surgem por toda a parte como elementos constitutivos dos mitos e ao mesmo tempo como produtos autóctones individuais de origem inconsciente. (Jung, C. G. 1978: 55)

Logo, permite que se fale da masculinidade como um modelo uno, estanque e universal, e permite igualmente que se retirem do contexto os mitos e que sejam trabalhados de forma comparada, estabelecendo equivalências, tal como o faz Bly.

As noções de anima e animus actuam aqui como fundamento para a descrição do que são os verdadeiros papéis do género na sociedade. Freud e, mais tarde o seu discípulo Jung, defendia que em cada indivíduo existe uma componente masculina e feminina. Assim, a anima é a porção feminina que existe no inconsciente masculino, verificável nos sonhos através da existência de uma personagem feminina e, a animus é a porção masculina que existe no inconsciente feminino, não personalizada na figura singular de um homem e sim num grupo de indivíduos do sexo masculino. Anima e animus são o produto da sedimentação de todas as experiências ancestrais do homem em relação à mulher e vice versa. Nesse sentido, a crítica que Robert Bly faz ao soft male e que Clarrisa Estés faz às career women têm em comum o pressuposto Jungiano de que a essência de um homem feminino e de uma mulher masculina se deve à sobreposição da anima e do animus na identidade do indivíduo: "a mulher tomada pelo animus corre o risco de perder a sua feminidade, sua persona adequadamente feminina. O homem em iguais circunstâncias arrisca efeminar-se." (Jung, C. G. O eu e o inconsciente. Col. Obras completas de C. G. Jung, vol. VII/2. Petrópolis: Vozes, 1979: 85) Visto que os autores acima referidos defendem a volta aos tradicionais papéis sexuais, os conceitos de anima e animus permitem reforçar a ideia de que cada sexo tem uma posição bem demarcada na sociedade e que qualquer tentativa de romper com a norma resulta numa perversão com sérias consequências para a harmonia do indivíduo nas inter-relações sociais.

O uso que Bly faz da psicologia Jungiana permite-lhe o desenvolvimento de ideias que situam os homens no grupo dominante de uma forma confortável, através da exclusão e da omissão da ligação entre masculinidade e a desigualdade do género, a assimetria, e por apresentar o género como uma construção natural onde os lugares dos dois sexos, na interacção quotidiana, estão perfeitamente definidos.

No entanto, há ainda um outro aspecto a salientar: a teoria de Jung define o género com base numa essência que é o arquétipo. Esta essência está na mente de todos os indivíduos, no inconsciente colectivo. Logo, se se acredita que os indivíduos podem ser reduzidos à sua essência, e que esta é comum a categorias de indivíduos, é legítimo pensar que um grupo humano é melhor que outro, que todos os homens defendidos por Bly são os melhores americanos, e que as categorias de sexo e de raça também correspondem a diferenças naturais entre os seres humanos. Assim, e embora Bly fuja à questão da homossexualidade e do racismo, será igualmente lógico depreender que este grupo do homens se considera superior às mulheres, aos homossexuais, aos negros, aos índios, entre outros grupos humanos.

O grande perigo do discurso de Bly é que ao utilizar Jung para justificar a dominação dos americanos brancos, classe média e heterossexuais está a criar uma ideologia que em nada contribui para resolver a situação de crise gerada por uma crítica social, e a legitimar a posição e o poder deste grupo masculino. Daí que este discurso justifique a assimetria simbólica entre os homens e as mulheres, pois a masculinidade é definida com base em três arquétipos: o Rei (político), o Agricultor (sedução e virilidade) e o Guerreiro (violência e força física). Assim sendo, torna-se claro que uma ideologia, ou um argumento político como é o caso, assente na teoria Jungiana retira ao género o seu carácter político, subliminando-o.

Logo, a opção pela auto-terapia revela-se uma estratégia que visa elidir o carácter político e reduzi-lo, aos olhos da sociedade, a um processo individual. Isto porque não nos podemos esquecer que Robert Bly tem por objectivo revalorizar a hegemonia de um grupo masculino que desde os anos 60 tem sido alvo de uma forte campanha protagonizada por distintos sectores sociais.

No entanto, se por um lado a teoria de Jung serve para omitir o carácter político da acção de Bly, a pregação da auto-terapia como solução para a crise masculina vem dificultar a identificação dos homens enquanto grupo social, uma vez que a terapia é um processo individual, dificultando qualquer forma de actuação politicamente eficaz.

Mas a opção pela auto-terapia deve-se também à própria história dos movimentos feminista e masculino. Isto porque, as raízes da auto-terapia encontram-se nos finais dos anos 60 com a contra cultura e com uma prática do movimento de libertação feminina, os Consciousness-Raising Groups.

No início dos anos 70, um vasto grupo de americanos sentia, na sua vivência quotidiana, o impacto das alterações sociais. Mas o facto de se estar a viver uma situação de crescente individualidade, somado ao facto de estes homens não se identificarem enquanto grupo social, levou a que cada um vivenciasse a crise à sua própria maneira. Só no momento em que a prática dos CR Groups se difundiu é que se deram conta de que tinham algo em comum. Robert Connell (Connell, Robert. 1995) refere que foram as workshops, organizadas por terapeutas do meio social, que deram origem ao movimento masculino, razão pela qual muitos dos livros sobre os homens e sobre a masculinidade foram escritos no sentido de dar uma resposta a uma exigência prática dos americanos, face à segunda vaga do feminismo.

Não se tratando de um movimento social (Uma vez que não é centralmente coordenado, não possui líderes oficiais, não tem como um dos objectivos a adesão de novos membros, não impõe uma doutrina aos seus participantes, não busca a alteração de políticas oficiais e nem sequer possui uma agenda política) a acção desenvolvida pelos mitopoéticos teve repercussões em toda a sociedade americana e não só. O objectivo deste vasto grupo é, segundo Michael Schwalbe (Schwalbe, Michael. 1996), o de questionar os mistérios da alma masculina e a natureza da masculinidade adulta, sendo um movimento espiritual e terapêutico que clama um saber entre a ciência e o um conhecimento para além do senso comum, um conhecimento intuitivo sobre a verdadeira masculinidade. Nesse sentido, o objectivo dos CR Groups era o de, através da reflexão e do fomento da auto-terapia, consciencializar os seus aderentes para a condição, quer a nível individual quer social, em que viviam. Neste sentido, e tal como Bly referiu em algumas entrevistas, o livro aqui em causa é fruto da prática dos CR Groups, já que vários dos seus capítulos haviam sido escritos para serem apresentados em algumas das sessões destes grupos.

Desta forma, a opção pela auto-terapia enquanto forma de actuação política deve-se em parte ao New Age e à prática dos CR Groups, mas, principalmente, ao facto de ser uma forma de omitir o carácter político do género uma vez que assumir publica e explicitamente a defesa de um modelo masculino tido como politicamente incorrecto pode ser muito problemático.

Daí que a auto-terapia, enquanto forma de acção política, se baseie no processo individual de sofrimento e na defesa do crescimento afectivo e intuitivo que conduz a uma mudança individual aparente, já que o objectivo pretendido é revalorizar um modelo de masculinidade desgastado.

II. Reificação da hegemonia masculina:

Do processo de auto-terapia definido por Bly devem resultar duas coisas: o restabelecimento da auto-confiança no modelo masculino defendido e um sentimento de que este modelo é o mais correcto para que a sociedade americana recupere a harmonia e a segurança nas relações do género. Em suma, para que se volte à sociedade tradicional idealizada por Robert Bly. Deste ponto de vista a superação da crise passa pela criação de uma imagem masculina toda poderosa, através da exaltação do ego masculino e do apontar das suas semelhanças com divindades ancestrais. Uma imagem que oculte o poder masculino, que o torne natural, facilitando assim a sua defesa perante a sociedade.

Aliás, é exactamente este aspecto que tem mantido viva a polémica em torno de Iron John. As críticas das feministas e dos pró-feministas apontam no sentido de que toda a lógica e todo o argumento defendidos por Bly neste livro ocultam, sublimam e naturalizam um poder e supremacia que nada têm de naturais e tão pouco estão invisíveis nas relações de género.

Para provar aos mitopoetas, e à sociedade, o seu ponto de vista Robert Bly constroe um cenário histórico no qual os homens são as grandes vítimas, e aqui retomo o que para o autor são as três causas da crise masculina: o advento do cristianismo, a Revolução Industrial e o movimento feminista (o qual irei analisar posteriormente).

O processo de reificação da hegemonia assenta, assim, no individualismo (dado que se trata de uma auto-terapia), no rito, na criação de um espaço de exaltação da masculinidade, nos mitos e nos contos de fadas. Um processo que conduz ao egocentrismo, a uma masculinidade separatista e exclusiva (que só é válida para alguns homens).

O individualismo:

Por se tratar de um argumento profundamente auto-centrado (do tipo: defender a todo o custo o meu modelo de masculinidade), a auto-terapia proposta por Bly assume em primeiro lugar que cada pessoa é única. Em segundo, que o verdadeiro self masculino provém de uma fonte divina e/ou mítica, o que lhe permite justificar o uso da mitologia. E terceiro, que todas as pessoas têm o direito inalienável de expressar o seu verdadeiro self.

Michael Schwalbe chama a atenção para os perigos desta forma de percepcionar o individualismo, já que o problema é que para além de serem pessoas estamos a falar de um grupo masculino dominante, que utiliza este tipo de pensamento para justificar e exaltar a hegemonia masculina. Uma justificação que iliba os homens de qualquer sentimento de culpa que os leve a reflectir sobre o impacto das suas atitudes e ideologia. "This illustrates one of the dangerous of therapeutic individualism: it can be used to justify whatever action or inaction makes people feel good." (Schwalbe, Michael. 1996: 216)

Este tipo de pensamento não conduz ao auto-questionamento, aquilo que Robert Bly propõe é o narcisismo onde o iniciando passa a não se importar com as críticas dos outros. E ao nível dos adeptos deste movimento a análise do impacto deste discurso sobre o género torna-se problemático, uma vez que Bly define o género como algo psico-biológico, torna-se difícil entender o sexismo e o patriarcado como instituições que beneficiam os homens enquanto grupo social.

Welcoming the Hairy Man is scary and risky, and it requires a different sort of courage. Contact with Iron John requires a willingness to descend into the male psyche and accept what's dark down there, including the nourishing dark.

For generations now, the industrial community has warned young businessmen to keep away from Iron John, and the Christian churc is not too fond of him either. (Bly, Robert. 1990: 6)

O rito de redescoberta da masculinidade:

O ritual proposto por Bly é marcado por três etapas principais: a separação da feminidade, a reclusão no espaço masculino, e o renascimento para a sociedade como homem pleno. E para o fundamentar faz uso de um vasto material etnográfico e mitológico de forma descontextualizada e comparativa, pois concebe os rituais e os mitos como estruturas fixas e, simultaneamente, como produto do inconsciente colectivo. Esta forma universal de entender a mitologia e a aplicação que Bly faz dela, servem para consolidar os papéis sexuais de forma estrita. O próprio Jung baseou a sua análise do género numa oposição abstracta entre o masculino e o feminino, ao conceber que as características determinantes do género residem no inconsciente, o depósito dos arquétipos. Logo, Jung reduziu as contradições do género a uma dicotomia universal ao nível da psique.

No entanto, Robert Bly esquece-se de que os mitos, e com eles as personagens mitológicas, são a forma pela qual determinada sociedade explica a sua existência. Tomo como exemplo a mitologia de algumas tribos indígenas da Bacia Amazónica, no Brasil, cuja mitologia foi sendo alterada consoante a necessidade de atribuir uma razão de ser a novos elementos. Ao estudarmos a mitologia de nações indígenas como os Waiapi, os Tupinambá, e mesmo os Yanomami, verifica-se a alteração do mito original com a introdução de novos elementos: o homem branco e o ouro. Ocorreu assim uma alteração na cosmologia para dar conta do processo em curso. Isto porque o mito possibilita ao homem compreender o universo, assumindo a função que em algumas sociedades é exercida pela religião: a de responder a perguntas existenciais necessárias para que as sociedades entendam quem são, a razão da sua existência, o processo que gerou o que nós chamamos história, e a relação dessas sociedades com o meio que as rodeia, seja ele a natureza ou outros grupos sociais vizinhos.

Este exemplo serve igualmente para ilustrar um outro facto: os mitos não são estáticos, são dinâmicos. E este dinamismo está profundamente relacionado com determinados eventos num tempo e espaço definidos, pelo que a descontextualização das lendas, dos mitos, e das personagens mitológicas, não deve ser feita de forma leviana como o faz Robert Bly.

Porém, subsiste ainda um outro aspecto relativo aos mitos que se distingue do primeiro: a sua vertente psicológica e didáctica. E Bly justifica a sua opção pela mitologia da seguinte forma:

With mythological thinking, there’s a possibility that a god is involved in the whole thing. Mythological thinking in a way involves polytheistic materials, and the belief that there are many gods in the psyche so that when you do something you recognize there is a god involved in what you’re doing. (Myers cita Bly, 1992: 412-413).

É com base na teoria de Bruno Bettelheim (Bettelheim, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Trad.Carlos Humberto da Silva. 5ª edição. Lisboa: Livraria Bertrand, 1995) que Robert Bly justifica a importância da mitologia no processo iniciático. Bettelheim, a partir dos seus trabalhos com crianças deficientes mentais, analisa a importância dos contos de fadas e dos mitos para a construção de uma maturidade psicológica segura. No seu entender o conto de fadas, mais do que os mitos, cativam as crianças pela sua própria estrutura. Os contos de fadas abordam, de forma natural, aspectos da vida de todos nós: expõem relações de amor e ódio, a morte, a relação entre pais e filhos. Tudo isto, de uma forma que, não só, cativa o leitor pelo aspecto fantasioso, e de certa forma romântico, mas ao mesmo tempo suficientemente realista para que o leitor se identifique com a personagem principal, para que compreenda o seu percurso, as suas dúvidas, e para que aprenda qual é a melhor forma de lidar com problemas existenciais. É este dinamismo dos contos de fadas que explica o facto das crianças não se cansarem de ouvir um determinado conto, enquanto o seu conteúdo fizer sentido para elas. No momento em que os seus problemas passarem a ser outros, o conto com que se irão identificar também será outro.

Robert Bly coloca em prática a tese de Bettelheim ao afirmar que o homem em crise é, em Iron John, o jovem príncipe e que ele próprio representa para este homem o que Iron John representa para o príncipe.

Ainda relativamente a Bettelheim, este compara a eficácia dos mitos com a dos contos de fadas, partindo do princípio de que os contos de fadas são a evolução dos mitos (e este aspecto representa outro factor que me faz ficar relutante quanto à forma como os contos de fadas são utilizados por Bly, porque assim sendo, os contos contém igualmente uma especificidade cultural).

Segundo a teoria de Bettelheim, a grande vantagem dos contos relativamente aos mitos reside na forma como o herói é apresentado ao leitor, o que facilita a adopção dos contos como terapia em detrimento dos mitos. O herói do conto de fadas é um exemplo e uma fonte de esperança para o leitor. Ao contrário dos mitos, em que o herói simboliza uma forma de estar, e onde não há a possibilidade da identificação do leitor com ele, porque o herói é sobre humano. A vantagem dos contos de fadas sobre os mitos é que estes não confrontam directamente o leitor com os seus conflitos, nem tão pouco lhe apontam uma forma de comportamento taxativa. Induzem-no a reflectir sobre determinados problemas, à semelhança de um terapeuta, daí que Robert Bly condene o cristianismo por ter acabado com o pensamento mítico.

Para Robert Bly a desvalorização da mitologia – e consequentemente, de toda a sabedoria a ela associada – deve-se ao surgimento do cristianismo. Com a instituição do monoteísmo, por oposição ao paganismo, toda a herança cultural baseada na mitologia pré-cristã foi sufocada e em alguns casos extinta. O argumento de Clarissa Pinkola Estés ajuda a compreender a atitude de Bly, ao recorrer ao conto de Iron John dos irmãos Grimm, porque, segundo ela, os contos dos irmãos Grimm são, na realidade, a tradução do paganismo pré-cristão para uma linguagem cristã.

So that an older healer in a tale became an evil witch, a spirit became an angel, an initiation veil or caul became a handkerchief, or a child named Beautiful (the costumary name for a child born during solstice festival) was renamed Schmerzenreich, Sorrowful. Sexual elements were omitted (O facto de declarar que os elementos sexuais foram omitidos não implica em afirmar que foram eliminados, muitas vezes permanecem nos contos mas de forma dissimulada. É importante ter isto em conta uma vez que a sexualidade surge em Iron John como um elemento praticamente inexistente). Helping creatures and animals were changed into demons and boogeys. (Estés, Clarissa Pinkola. 1992: 16)

Entretanto, a relação entre o passado pagão das culturas cristãs ainda está presente no que hoje em dia se denomina religião popular. Autores como Moisés Espírito Santo (Ver por exemplo o livro Religião Popular Portuguesa, Lisboa, Assírio e Alvim, 1990) deixam bastante evidente a distinção entre as práticas católicas da religião oficial, práticas essas regulamentadas pelo Vaticano, e as práticas da religião popular, as quais muitas vezes, dada a forte influência do espírito pagão, são condenadas pela Santa Sé. Assim sendo, comprova-se que não foi o monoteísmo cristão que levou ao esquecimento e à desvalorização dos antigos mitos e lendas. Nesse sentido, tanto Jung quanto Lévi-Strauss concordam que foi durante o Renascimento, com a valorização do racionalismo e da ciência, dada a necessidade que o pensamento científico teve de se sobrepor ao pensamento religioso, que se deu esta desvalorização do pensamento mítico. Indo assim em sentido contrário ao de Robert Bly.

Todavia, o uso dos contos de fadas serve igualmente ao propósito de reforçar o peso do essencialismo através do seu carácter sexista e da demarcação dos papéis sociais para homens e mulheres. Em Iron John, e em muitos outros contos, surgem personagens femininas representadas como prémios (princesas com quem os heróis se casam no fim), bruxas más e cloying mothers. Os contos de fadas celebram a ligação entre a masculinidade e o poder, pois lidam com as duas imagens caras ao imaginário masculino: o guerreiro e o Homem Selvagem (equivalente ao espírito do animal robusto que se encontra em todos os homens). As imagens que representam a força e a violência são tratadas como as qualidades essenciais do homem e da masculinidade, valorizando a ideologia da supremacia masculina, ideologia profundamente defendida pelo autor Robert Bly e por todos aqueles, que tal como ele, partilham o desejo de ver renascer na América o homem tradicional e verdadeiramente masculino.

Desta forma, os ritos de iniciação masculina devem ser entendidos como um comportamento repetitivo e estereotipado, expressivo e comunicativo, no sentido em que contêm uma mensagem sobre a auto-percepção masculina e a imagem que os homens têm das mulheres. A esse respeito Sharon Doubiago refere que: "we don’t need more rituals and initiations, as Bly and the boys call for, which always lead to institutionalized force, to fascis (Doubiago (1992, 83)." Todavia, este tipo de ritual da masculinidade serve uma função importante: a de tentar restituir a segurança ontológica a determinados homens, numa sociedade onde a distância entre a ideal e a real divisão sexual do trabalho e do espaço é dilatada.

Espaços de exaltação da masculinidade:

Robert Bly defende que nas sociedades tradicionais, onde os jovens conviviam mais assiduamente com os pais, tios e avós, havia um espaço exclusivo dos homens e que nesse espaço os jovens eram iniciados na masculinidade. Com a Revolução Industrial este convívio deixou de existir tendo como consequência a diluição destes espaços masculinos. Daí que nas workshops do movimento mitopoético ele procure reconstruir este espaço.

Elisabeth Badinter refere que há uma tendência para que o grupo masculino dominante construa espaços de exaltação da masculinidade sempre que o seu poder se encontra ameaçado. Foi assim no início do século XX quando os Estados Unidos viveram uma crise masculina semelhante a actual, onde a feminização e europeização da América constituíram os dois grandes pesadelos que assolaram as mentes de muitos homens. No entender destes homens, a substituição da força de trabalho masculina pela feminina e a influência dos valores europeus representavam o fim do verdadeiro homem americano. Nessa altura surgiram os escoteiros, cujo objectivo principal era o de afastar os rapazes do mundo feminino, e evitar que se tornassem os mama’s boys. O espaço físico em que conviviam uns com os outros, jovens e adultos, incentivava o surgimento de um espírito de camaradagem, no qual o homem adulto representava, para o mais novo, o herói, o modelo masculino a seguir. É nessa época que surgem os personagens do Tarzan e do cow-boy. Aliás, é de ressaltar o peso que a indústria cinematográfica, de então, deu ao modelo de herói masculino: másculo, forte, poderoso e viril. E Jeffrey P. Hantover (Kimmell (1995: 75) refere ainda a existência de organizações masculinas com referência na Idade Média: Knights of King Arthur, Order of Sir Galahad e Knights of the Holy Grail.

O fascínio que esta época da história europeia exerceu ainda se acentuou mais, e podem-se encontrar em Iron John exemplos bastante concretos, o que revela uma certa nostalgia dos velhos tempos do patriarcado, profundamente consolidado, não obstante os constantes desmentidos por parte de Robert Bly. Nostalgia essa que nos reconduz, de quando em quando, a um dualismo dos sexos incompatível com a evolução dos costumes. Estes espaços masculinos são entendidos, pelos seus criadores, como espaços sagrados onde a masculinidade associada, ao poder e à heterossexualidade, deve ser honrada e celebrada.

Um bom exemplo, para além de Bly, é Richard Prosapio (Revista Expresso, 24 de Fevereiro de 1996, página 54-59. Tradução de Rui de Carvalho), mais conhecido por Coyote. Um ex-contabilista de Chicago, que decidiu aproveitar o culto da "verdadeira" masculinidade para ajudar jovens yuppies a reencontrarem o seu passado indígena, e assim a masculinidade perdida. Vivendo actualmente nas montanhas do Novo México, Coyote, que se considera uma espécie de xamã Navajo, pelo tipo de rituais que pratica, leva os wildmen (os seus "noviços") a falarem e a compartilharem as experiências vividas com as mães e com os pais. E, tal como em Iron John, a figura materna apresenta-se como castradora e co-responsável pelo afastamento do filho da masculinidade ideal. Quanto ao pai, e na mesma lógica, é representado como ausente, violento e responsável pela falta de auto-estima do filho. Durante os cerimoniais, que decorrem ao longo de um fim-de-semana na floresta, os homens exteriorizam a raiva que sentem tanto da mãe como do pai, ao ser-lhes dado um bastão para espancarem um fardo de palha, que simboliza ora a mãe, ora o pai. Num outro exercício, procura promover o restabelecimento do laço entre a natureza e os "noviços", quando são levados a andar, de olhos vendados, pela floresta, tendo como guia um outro homem que os conduz pela mão. Assim, Coyote procura ainda fortalecer o laço que deve unir os homens entre si.

Outro autor profundamente ligado à questão da crise de identidade masculina, Sam Keem (O seu livro Fire in the Belly tem exercido um forte impacto nos adeptos do movimento mitopoético e em todos os que se destinam, à margem do meio académico, a estudar a crise de identidade masculina), apresenta alguns pontos em comum com Bly, tais como: o facto de prescrever uma terapia para a masculinidade ferida, o de sugerir uma jornada curativa da masculinidade, para além da ideia de uma iniciação mística da masculinidade que envolve a separação do mundo feminino. As questões fundamentais colocadas por Keem são:

What is wrong with us? With men? Women? Society? What is the nautre of our alienation? Our disease? What would be like if we were whole? Healed? Actualized? If our potentiality was fulfilled? How do we move from our condition of brokeness to wholeness? What are the means of healing? (Keem (1992: 7))

A diferença entre Keem e Bly verifica-se na profundidade de questões que Keem levanta, indo um pouco mais além do que o simples questionar da masculinidade. Ele afirma que Fire in the Belly não é só um culto masculino separatista, como adjectiva a acção de Bly. Interliga a cura masculina com a cura do Planeta Terra e da sociedade, marcadas pela homofobia, pelo racismo e pela degradação ambiental, inserindo a cura da masculinidade num projecto mais amplo de recuperação do Planeta. Desta forma, Keem sugere o conceito de ecomasculinidade (paralelamente ao conceito de ecofeminismo) sendo a sua marca a proximidade positiva entre os indivíduos e a natureza.

Embora Keem não esteja directamente relacionado a práticas rituais como estão Bly e Coyote, salienta igualmente a necessidade de existir um espaço de convívio para os homens que se sentem, de alguma forma, inseguros nos papéis que lhes são socialmente destinados. Um espaço no qual possam trocar experiências e tomar consciência de que não se trata mais de uma crise individual, mas sim de um sentimento comum a todo um grupo social. Esses espaços são usualmente denominados de espaço-ritual ou espaço sagrado, contudo, existem espaços onde se promove a masculinidade viril dissociadas de qualquer tipo de movimento pró masculinidade.

Vários estudos realizados nos Estados Unidos (Ver Kimmell e Badinter) sobre a relação existente entre o ser másculo e determinadas práticas desportivas, indicam que as práticas mais violentas são aquelas que estão mais directamente associadas à virilidade, não só pelos praticantes, mas por toda a sociedade. Nesse mesmo sentido, o ambiente dos ginásios é, muitas vezes, descrito como um espaço quase ritual onde os rapazes testam a sua virilidade, principalmente expressa na forma agressiva e sexista como descrevem as relações com as raparigas, na forma como competem entre si na descrição das mais fantásticas histórias de desempenho sexual. Didlier Dumas, autor de La Sexualité Masculine (Elle portuguesa "Expliquem-me como são os homens, se faz favor", 1992, 42-45), refere ainda que os balneários são muitas vezes o palco de práticas homossexuais entre os jovens do sexo masculino. Contudo, tais práticas não significam que os protagonistas venham a ser homossexuais. Para o autor tratam-se de experiências necessárias para o desenvolvimento da sexualidade heterossexual e para a descoberta do funcionamento do próprio corpo, isto porque, para Dumas, a elaboração da virilidade requer a rivalidade entre os seus semelhantes. É o aspecto da competição necessária entre os homens que pode justificar o receio que sentem, uns dos outros. Claro que, num ambiente onde há a necessidade de pregar, com toda a veemência, a heterossexualidade dos homens ali presentes, não é mencionado que a homofobia contribui igualmente para o distanciamento entre eles. Já não tomando em consideração o papel da assimetria sexual, pois o facto de os homens não serem tidos como um grupo social, que são, facilita a sua individualização.

É exactamente neste sentido que Michael Schwalbe (Kimmell, 1995) defende que um dos pontos positivos da prática defendida por Bly é a possibilidade de se desenvolver, entre os participantes das workshops, o sentimento que Victor Turner denomina de comunitas.

Estabelecer o sentimento de comunitas é propiciar a capacidade de se relacionar com os outros sem as inibições e as formalidades definidas pelos papéis sociais e pelas posições de status. Fundamentalmente, comunitas é um relacionamento que se estabelece entre indivíduos concretos e históricos. Isto porque, durante o desenrolar de um workshop os terapeutas (chamemos-lhes assim) fomentam a libertação de todo o tipo de clivagens sociais que possam constituir uma barreira ao convívio e à identificação dos participantes entre si, procurando que se estabeleça uma confirmação das identidades de forma directa, imediata e total. Com isto pretendem construir um modelo de sociedade homogéneo, ausente de clivagens sejam elas de que natureza forem.

A necessidade de criar uma atmosfera de identificação e de conexão entre os participantes está relacionada com o objectivo maior: o de levá-los a se aperceberem de que o mais importante é a busca e a defesa da "verdadeira" masculinidade. Desta forma, a conexão entre eles é desencadeada pelo tipo de actividades desenvolvidas, tais como: a leitura de poemas, a narração de histórias míticas e/ou de contos de fadas, a prática de danças, de ritos e de psicodramas. Com este tipo de actividades os participantes são levados não só a falarem e a exteriorizarem os seus sentimentos, mas também a compartilhá-los com os outros, resultando num sentimento de intimidade e de irmandade. Os rituais criados, no contexto destes encontros, envolvem a adopção de um determinado tipo de crenças e de leis simbólicas, de valores e de sentimentos, constituindo, então, numa forma de exteriorizar, de tornar visível e público, determinados sentimentos relativos a traumas psicológicos e físicos, os quais usualmente ficam retidos no íntimo do indivíduo. George Blooston afirma que as actividades desenvolvidas são também percepcionadas como emblemas da energia masculina. Porém, servem a um outro propósito muito importante: "by setting men out of their usual mind –sets (or past their commom embarrassments), reading them to confront their psychological wounds (Bloosom (1990: 76))."

O uso de tambores, por exemplo, constitui uma das práticas rituais utilizadas com o propósito de incentivar o sentimento de fraternidade entre os homens. Nesse sentido, e uma vez que os instrumentos são o produto do trabalho de um grupo, a música daí resultante pode ser considerada como o produto e a expressão dos sentimentos desse mesmo grupo. É uma forma não racional de falar dos sentimentos. Estés defende ainda que o toque do tambor para além do sentimento gregário que gera, invoca o espírito daquele com que se construiu o instrumento.

It is told that the skin or body of a drum determines who and what will be called into being. ... Drums made of human bone call the dead. Drums made of the hide of certain animals are good for calling the animal spirits. Drums that are particularly beautiful call Beauty. Drums with bells attached call child-spirits and weather. Drums that are low in voice call the spirits who can hear that tone. Drums high in voice call spirits who can hear that tone, and so on. (Estés (1992: 158-9))

Não posso afirmar categoricamente que a adopção deste tipo de práticas se deve a este ou àquele factor. Contudo, tendo em conta as dicotomias anteriormente apresentadas e o facto destes homens terem crescido numa sociedade conservadora (profundamente marcada pelo ideal puritano), ainda vigora a máxima de que "o homem não chora", como exemplo da forma como o homem deve lidar com os seus sentimentos (contendo ou racionalizando-os), torna necessária a utilização da arte - a música, a literatura, e o teatro - como veículo de exteriorização dos sentimentos muitas vezes negados ou reprimidos. Esta necessidade de tornar público algo que é do foro privado serve ao propósito, várias vezes reclamado ao longo do livro, de validação dos sentimentos do grupo masculino.

Porém, verifico que ao longo da análise de Iron John e mesmo dos artigos seleccionados, surge como imprescindível que estes sentimentos (a respeito do que é ser homem, de como actuam as mulheres e a respeito da sociedade como um todo) sejam socialmente aceites, principalmente se se tiver em conta que Iron John é, de certa forma, uma obra autobiográfica. Isto porque Bly tenta validar o seu percurso biográfico e a sua luta contra os homens "suaves" e contra as mulheres através do argumento sustentado no livro. Contudo, adopta uma estratégia perigosa, pois para Bly a sociedade tem de aceitar o que ele e os demais mitopoetas sentem e acreditam, mas estes não se mostram abertos a aceitar o que a sociedade sente.

O problema é que Bly, ao defender a institucionalização de ritos como o que descreve em Iron John, não está a contribuir para a criação de uma "sibling society" – título do seu último livro – mas sim de uma sociedade onde aumenta o fosso entre os homens e as mulheres. O lema "make love not gender war" defendido pelo movimento masculino nos anos 70 parece não se aplicar aqui, embora Bly afirme que é exactamente isto o que pretende.

Para Michael Schwalbe rotular a acção mitopoética de uma mera versão masculina do New Age que procura resistir à mudança da ordem social patriarcalista é abordar só meia verdade. A outra metade, do ponto de vista destes homens, é que, de facto, eles procuram uma forma de lidar com os seus problemas, no fundo procuram construir uma identidade moral que lhes permita restaurar a sua identidade masculina no contexto do patriarcado.

Os mitopoetas encaram o essencialismo quase como uma religião, é um anti-intelectualismo estratégico. Acham-se superiores, e não dão atenção às críticas que lhes são feitas, o que revela a sua tendência narcisista e conservadora. Procuram a auto-afirmação num espaço em que os outros estão presentes para dar apoio: I love you, I’m proud of you, you’re okay, I see you as a success, são frases muitas vezes ouvidas e aplaudidas durante os encontros.

A fim de contestar o uso que os essencialistas fazem da biologia, o professor Antonio Vieira afirma que, na verdade, trata-se de uma manobra com vistas a fundamentar a ideologia segundo a qual mulheres e homens encontram na natureza o exemplo do verdadeiro comportamento humano.

Tentar obter paralelos directos de comportamento entre a espécie humana e espécies não humanas é um passatempo perigoso. Uma vez que há cerca de duzentas espécies diferentes de primatas não humanos, e um número ainda maior de sociedades humanas reconhecidamente distintas, não é difícil encontrar paralelos que provem o que se pretenda (Soczka Soczka, Luis. Ensaios de etologia social. Lisboa: Fim de Século Edições LDA, 1994:17)

Se uma pessoa acredita que os grupos humanos são essencialmente diferentes, entre si, isto pode levá-la a acreditar que um grupo é melhor que os outros, sob certos aspectos. Assim sendo, as diferenças essenciais entre os grupos têm sido utilizadas para justificar a opressão e a exploração, como por exemplo o racismo.

Nesse sentido, recorrer à teoria de Jung, representa uma forma de ajudar os mitopoetas a contornar as contradições e a manter o status-quo. Pois o pensamento jungiano não explica como as pessoas fazem a cultura, como a cultura e a organização da sociedade moldam o comportamento dos sexos. Ao utilizar a noção de arquétipos eles estão a reproduzir os mesmos elementos da masculinidade tradicional que os feriu.

O que Bly prega no livro e nos encontros, não é a cura, é um paliativo, porque a sociedade rejeita o modelo por ele defendido. No entanto, Barry Simon defende que o real objectivo do autor é transformar a masculinidade dominante de vitimizador a vítima, principalmente tendo em conta a definição que Bly dá do homem americano: "being male in America means dying younger than women, struggling with substance abuse and violent crime, higher rates of chronic illness, and a general sense of feeling guilty for being male.( Simon, Barry. 1994: 485)" Porém, o facto de estarem a levar a sério os seus sentimentos representa um potencial para uma quebra, positiva, com a tradicional masculinidade. Um facto positivo é que ao estarem a exercitar a amizade masculina pode diminuir o fantasma da homofobia.

Na opinião de Michael Schwalbe, numa sociedade profundamente marcada pela supremacia masculina, não se pode falar numa forma inocente de celebrar a masculinidade sem, simultaneamente, reafirmar o valor inferior das mulheres e dos modelos masculinos que não sejam os aceites por este grupo. É sim, uma forma de resistir à alteração das forças de poder na sociedade.

III. A ideologia anti-feminista:

No prefácio de Iron John: A Book About Men, Robert Bly afirma:

There is a male initiation, female initiation, and human initiation. In this book I am talking about male initiation only. I want to make clear that this book does nos seek to turn men against women, nor to return men to the domineering mode that has led to repression of women and their values for centuries. The thought in this book does not constitute a challenge to the women's movement. The two movements are related to each other, but each moves on a separate timetable.( Bly, Robert. 1990: X)

Se é realmente isto o que Bly pretende torna-se premente questioná-lo sobre:: porque escreveu Iron John da forma como o fez, porque o movimento mitopoético faz parte do grupo anti-feminista do movimento masculino, porque tanta ênfase na separação entre o mundo masculino e o feminino e porque entender o género como uma essência que está contida em todos os indivíduos e que nunca muda? Isto já sem mencionar que para este autor uma das causas da crise masculina é o próprio movimento feminista.

A crítica ao feminismo pode ser compreendida, se for tido em conta o ressentimento que homens, como Robert Bly, sentiram no momento em que as feministas começaram a questionar o modelo dos papéis sociais, e a reflectir sobre a noção de masculinidade hegemónica.

Warren Farrel (Faludi, Susan. 1991: 334), companheiro de Bly no movimento mitopoético, escreveu Why men are the way they are. Nesse livro o autor critica as feministas por culparem os homens pela desigualdade de oportunidades entre os sexos e por encorajarem, excessivamente, as mulheres a lutarem pela sua independência. Tal como aconteceu com Robert Bly, Farrel assumiu uma posição a favor do feminismo, na década de 60. Na década de 80 assume uma posição totalmente oposta. Segundo Farrel, os homens vivem uma era em que não se sentem compreendidos pelas mulheres. A sua tese é a de que, até aos anos 60, a mulher estava segura no casamento, era um sistema que vinha funcionando bem por mais de 1000 anos. As mulheres estavam a encontrar homens que eram os melhores protectores e caçadores, e os homens competiam pelas mais belas mulheres. Na sua opinião os homens eram os verdadeiros "escravos" do sistema porque trabalhavam mais do que as mulheres. Contudo, a partir da década de 70 os divórcios tornaram o sistema inseguro.

Homens como Farrel e Bly, que participaram activamente nos movimentos anti-governamentais dos anos 60 envolveram-se profundamente com mulheres defensoras do feminismo. Contudo, no momento em que as críticas destas mulheres se voltaram contra eles e que viram os seus casamentos destruídos por causa do feminismo, sentiram-se revoltados e traídos. Se até então compartilhavam com as feministas determinados ideais, quando sentiram as suas posições ameaçadas revoltaram-se. Homens como Bly e Farrel estavam dispostos a mudar a sociedade desde que estas mudanças não lhes retirassem o poder e não implicassem na sua diminuição em termos de status social. Esta é a razão pela qual entre as décadas de 1970 e 1980 se dedicaram totalmente à causa masculina. Esta mudança de lado, por assim dizer, levou a que alguns críticos do movimento masculino anti-feminista chamassem a atenção para as contradições nos discursos destes homens.

Susan Faludi, por exemplo, chama a atenção para a posição de Farrell na década de 70, quando afirmava que o antigo sistema (que agora defende) confinava as mulheres em casamentos claustrofóbicos. Ele tomava como exemplo a sua própria mãe, que andava constantemente deprimida: "into depression when she was not working, out of depression when she was working" (Faludi, Susan. 1991: 335).

Farrell organizou e participou em vários CR Groups onde motivava os homens a ouvirem a posição das mulheres. Nessa altura entendia o feminismo como uma forma de libertação masculina: "from the economic burden of supporting a family alone and from physical and mental strain of constantly proving masculinity and repressing ‘feminine emotions’" (Ibiden 336). Farrel diz agora que o feminismo transformou os homens em objectos. Hoje sente-se traído porque o seu engajamento na causa masculina, que o afastou dos amigos e da visibilidade social que tinha na década de 1970, afastamento justificado pela discrepância entre o modelo de masculinidade socialmente aceite e o defendido por Farrel.

Quanto a Bly, a forma como retrata as mulheres é o resultado de uma reacção à auto-afirmação feminina em casa e no trabalho, e tal como defende Faludi, é uma questão de perda de poder. Estamos a assistir a um movimento, não organizado, que já assolou os Estados Unidos no início do século XX: o medo da feminização da América. A revista The Economist refere o facto de se veicular o tremendo sucesso das mulheres na escola e no meio universitário, levando-as a uma maior especialização e, consequentemente a uma maior facilidade na obtenção de empregos.

The signs are everywhere in America and Europe: more women at work, girls doing better in school; debate about "feminisation" in America’s politics; its "million-man march" last year. This article summarises the evidence of a growing social problem: uneducated, unmaried, uneployed men. (S/ autor. "The trouble with men - tomorrow’s second sex." The Economist, 28 de Setembro de 1996: 23)

Mas isto também é um mito, porque, no mundo real, as mulheres ainda recebem salários inferiores aos congéneres masculinos, e os postos masculinos em causa são aqueles ocupados por homens com menos qualificação e menor instrução escolar.

Para Cornwall (Connell, Robert. 1995) a masculinidade que Bly quer restituir é aquela que mais rapidamente se identifica com o poder, a que anula a existência de outras masculinidades: a masculinidade hegemónica. Em referência expressa ao Iron John, Cornwall e Lindisfarne afirmam que Bly é a expressão de uma tendência que existe na sociedade americana, que é a de denegrir a imagem do novo homem. A sua acção tem mais a ver com a luta por um realinhamento da associação do poder com a masculinidade.

No entanto, com o intuito de defender Robert Bly das acusações que lhe são dirigidas por Connel (É necessário referir que a crítica dirigida por Connell a Bly é corroborada por autores como Badinter, Schwalbe, Cornwall, entre outros, revelando, assim, a existência de uma imagem consensual, no meio académico, no que diz respeito a Robert Bly), Shepherd Bliss afirma que:

Sociology and poetry are distinct ways of knowing and communicating. Poets and sociologists tend to be different creatures. One uses metaphor, the other fact. R. W. Connell’s article is a sociological critique of poet Robert Bly and the mythopoetic men’s movement...Does Bly "distort", as Connell claims, and engage in "excess"? Yes, he does. He is an artist; and artists do distort and engage in excess. Bly and other artists offer a certain kind of leadership, rather than the attention to details good sociologists have or the organizational acuity politicians need. Bly would not make a good sociologist or politician. But he is a great poet.(Schwalbe, Michael. 1996: 227)

Uma forma de encarar a realidade como o faz Shepherd Bliss, que centra a sua resposta nas diferenças entre uma postura científica e uma postura artística nada mais faz do que fugir ao âmago da questão com um discurso desculpabilizante. Tal como referi, o problema da ideologia de Bly é a inexistência de argumentos social e cientificamente válidos, que confirmem o seu ponto de vista.

Mas retomando a questão da reacção ao feminismo, para além da menção directa à acção das feministas existem outros dois aspectos que reforçam o carácter reaccionário: a ênfase na separação mãe-filho e a homofobia.

Robert Bly defende que a Revolução Industrial aproximou a mãe e o filho dada a ausência paterna. O impacto da Revolução Industrial sobre a família tem sido referido por vários autores como Connell, Badinter, Faludi e Giddens. De certa forma concordam com Robert Bly, ao defenderem que o novo sistema de produção acarretou a separação da família alargada. Contudo, Giddens menciona dois aspectos que permitem compreender a lógica de Bly. Na opinião de Giddens, o sistema de produção industrial promoveu o surgimento do conceito de maternidade e de paternidade, enquanto sustentáculo da família, e esta separação entre o papel masculino e o papel feminino assenta na dicotomia entre o espaço público (masculino) e o espaço privado (feminino).

Nesse sentido, a Revolução Industrial não só afastou o pai de casa como aproximou a mãe do filho, mas não da forma como Bly defende. O conceito de pai como sustentáculo da família é o complemento do conceito da mãe como educadora dos filhos, são como duas metades do mesmo todo. Na opinião de Robert Bly a mãe ficou a tomar conta do filho porque não teve que sair de casa, o que não corresponde a verdade. Sabemos que no século XIX a mão-de-obra mais barata era a infantil seguida da feminina, e que mesmo na burguesia a mulher trabalhava fora de casa.

A nova organização do trabalho engendra, de facto, uma real separação dos sexos e dos papéis. Ao longo do século XIX vão-se sedimentando os papéis dos homens e das mulheres: ele como ganha-pão e ela como dona-de-casa e mãe. Nesse sentido, a virilidade é agora simbolizada pelo dinheiro.

Robert Bly contesta o impacto da Revolução Industrial sob dois aspectos: a destruição da família alargada e o afastamento da figura paterna do lar. Estes dois factores permitem-lhe explicar a relação prejudicial entre mãe e filho. No entanto, ao valorizar o papel do homem, enquanto guerreiro e rei, está a valorizar a imagem masculina do pós-revolução industrial: responsável pela segurança e pelo sustento da família. Por outro lado, ao contestar a relação mãe-filho, em parte, resultado do afastamento da figura paterna, não aponta a criação da maternidade como, igualmente, produto da mesma revolução. Todas estas contradições acentuam-se, se for tido em conta o facto de Bly ignorar que a maior parte das americanas não restringem a sua actividade ao papel de mães. A entrada da mulher no espaço público pode representar a solução para a tal relação doentia, tendo em conta que o tempo de convivo entre mãe e filho diminui consideravelmente. Mesmo porque Bly refere-se às mães como fomentadoras de uma conspiração contra os pais, como psicologicamente incestuosas, por transferirem para os filhos os desejos que sentem pelos maridos.

Bly não se refere à Revolução Industrial como fomentadora da maternidade, e uma das consequências da veiculação da imagem materna tal como o faz Robert Bly, é o crescimento de rapazes sexistas e temerosos em relação às mulheres. E então lança-se a questão: se a mãe é uma figura tão má, porque os pais não passam a abdicar da ideia de que têm de prover o pão para serem uma figura mais presente, de modo a salvar o filho das garras da mãe?

Bly, e os adeptos do movimento mitopoético, afirmam que desejam ser, para os seus filhos, uns pais mais presentes, uma vez que sofreram os danos causados pelo facto de terem crescido em famílias onde a figura paterna, por uma razão ou por outra, era inexistente. A adopção deste modelo de paternidade pode ser interpretada como uma defesa da maternidade masculina, por assim dizer, tal como refere Elisabeth Badinter. Porém, será que os homens, e mesmo as mulheres, querem que esta maternidade masculina passe do campo ideológico à prática? Por um lado, muitas mães não encaram com gosto a perda de poder que exercem sobre os filhos, e para tal Badinter refere M. Lamb e D. Oppenheim ("Fatherhood and Father-child Relationships", in Cath (e outros), 1984). Por outro lado, quando se coloca a hipótese da paternidade participativa, outro factor entra em causa: a vontade do pai em abdicar da sua carreira em prol da educação do filho, embora à mulher, muitas vezes seja isso que se lhe pede.

Nos anos que se seguem não é o problema de deixar o filho sob a tutela materna que deve preocupar os pais, e sim o de deixar o filho sob a tutela das amas, uma vez que tanto o pai como a mãe dão tal valor às suas carreiras que os filhos, muitas vezes produto de uma pressão da família e dos amigos, acabam por ficar em segundo plano.

A homofobia:

A necessidade de demarcar os homens do mundo feminino para além de resultar na visão deturpada do papel das mulheres na sociedade, resulta também na necessidade de reforçar a virilidade e a heterossexualidade como atributos que distinguem os verdadeiros homens dos outros, e que reforçam o não ser feminino.

A intimidade fomentada pelas práticas orientadas por Bly ou por Coyote associada à necessidade de reforçar a virilidade, como padrão definidor da masculinidade, escondem o receio do desenvolvimento da homossexualidade: a homofobia.

Recorrendo a Freud, tal como o faz Bly, é possível interpretar-se a exaltação da heterossexualidade também como um reflexo da homofobia (Esta relação entre masculinidade e homofobia foi introduzida no capítulo anterior, no caso concreto da análise à obra de Bly, há que referir que se tratam de especulações, com uma base relativamente sólida, as quais me permitem compreender determinadas posições assumidas pelo autor). Isto porque Freud concebia o indivíduo como bissexual à nascença, ou seja, considerava que toda a criança possui vertente feminina e outra masculina. Ao longo do processo de socialização, tendo em conta que a cultura defende o modelo heterossexual, os indivíduos acabam por desenvolver mais a vertente correspondente à do seu sexo biológico. Assim sendo, a teoria freudiana encara a homofobia, e mesmo a defesa exacerbada da virilidade, como um sinal de uma homossexualidade latente (sendo o comportamento latente aquele que não é conscientemente expresso, mas que subsiste no inconsciente). Tendo em conta que a sociedade americana tem sido profícua na difusão de modelos masculinos viris, é assim compreensível que o comportamento homossexual não seja tido como desejável ou como socialmente aceite.

Giddens (Giddens, Anthony. 1995) afirma que o medo da homossexualidade, no meio americano, é confirmado por estudos como os de Lilia Rubin e Alfred C. Kinsey, segundo os quais uma parte considerável dos americanos já tiveram experiências homossexuais, são homossexuais ou bissexuais. Estudos como os referidos apresentam uma das possíveis explicações para o profundo receio da homossexualidade masculina. Contudo, apesar de não se poder afirmar taxativamente que todos os que defendem a heterossexualidade e virilidade possuem um desejo homossexual latente, no caso de Robert Bly existem alguns indícios que apontam nesse sentido. A ausência da sexualidade em Iron John (tendo em conta o peso do comportamento viril) e o facto de que a sexualidade funciona como um elemento maleável do eu, como um ponto de ligação fundamental entre o corpo, a auto-identidade e as normas sociais, é um dos aspectos. O outro é o carácter conservador do discurso em relação à mulher e aos gays.

Foucault (Foucault, Michael. 1994) refere que nos últimos três séculos houve uma profusão de formas de discursos sobre a sexualidade e que actualmente ela está ligada a dispositivos recentes de poder. Tendo em conta que o seu objectivo é o de provar que a teoria da repressão da sexualidade (principalmente em termos de discursos) não se verifica, entendo que a ausência da sexualidade, na obra de Bly, não deve ser entendida como o reflexo de um tabu social. Sobretudo face à presença da sexualidade, mais ou menos explícita, nos meios de comunicação, na publicidade, entre outros campos da vida quotidiana. Neste sentido, esta ausência pode estar associada a outro factor: a homofobia.

O facto de Bly e Hillman (Shewey, Don. 1992) defenderem que a homofobia é a desconfiança dos mais novos em relação aos mais velhos, (embora Hillman encare pelo menos ao nível do discurso, a presença de gays nos encontros como um facto benéfico tanto para os homossexuais como para os heterossexuais), e a forma como Bly se defende da homossexualidade, são, quanto a mim, reflexos da homofobia, entendida como fobia da homossexualidade.

Nesse sentido, os homófobos são indivíduos mais conservadores, por receio de perder a heterossexualidade. Por insegurança, acabam por ser aqueles que mais defendem a manutenção dos tradicionais papéis sexuais. Assim, a homofobia muitas das vezes, acaba por desvendar o que procura esconder. É interessante o facto de Hillman referir primeiramente que a homofobia é o resultado da falta de confiança dos homens mais novos em relação aos mais velhos (tal como Bly, em Iron John) e só depois abordar a questão dos gays.

Desta forma ficam evidentes as motivações de Robert Bly para escrever Iron John: A Book About Men.

O fim que Bly pretende atingir com este livro é, antes de mais defender o poder e o status quo do grupo masculino dominante. Para tal, influenciado pelos movimentos sociais dos anos 60 e motivado pela reacção do feminismo da década de 1970, constrói um argumento político que lhe permite elidir o aspecto político do mesmo e, simultaneamente, desculpar-se perante a sociedade. Argumento esse baseado na auto-terapia e no individualismo.

 

 


Précédente ] Accueil ] Remonter ] Suivante ]