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IRON JOHN: A BOOK ABOUT MEN

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IRON JOHN: A BOOK ABOUT MEN

APRESENTAÇÃO DO LIVRO
E DO ARGUMENTO POLÍTICO DE ROBERT BLY

O objectivo deste primeiro capítulo é apresentar o livro de Robert Bly: Iron John: A Book About Men, de uma forma que não segue a lógica do livro em si, mas que permite ao leitor compreender o raciocínio de Bly no que diz respeito à crise de identidade masculina – causa, justificativa e solução - e por conseguinte do seu argumento político. Centrado na problemática da construção da masculinidade, este conto dos irmãos Grimm foca a vida de um jovem Príncipe desde o momento em que seu pai aprisiona o Iron John (para Bly símbolo da verdadeira masculinidade) até ao dia do seu casamento com a Princesa, filha de um Rei a quem o jovem serviu e ajudou a vencer a batalha contra o reino vizinho. Durante todo este percurso de maturação e sedimentação da masculinidade (na opinião de Robert Bly) o Príncipe é auxiliado e conduzido por Iron John.

Com o intuito de tornar mais acessível a compreensão do argumento de Bly, optei por introduzir o conto de Iron John, numa tradução condensada da última parte deste livro: The Story of Iron John (Bly, Robert, Iron John: A Book About Men (2º Ed.) New York: Vintage Books, 1992:250-259). Assim, quaisquer futuras referências a passagens deste conto serão facilmente contextualizáveis pelo leitor.

I. O conto de Iron John

Era uma vez um castelo que ficava próximo de uma magnífica floresta onde viviam todas as espécies de animais selvagens. Um dia, o Rei mandou um caçador abater um veado, mas o caçador não voltou. No dia seguinte enviou mais dois homens que também não voltaram. Ao terceiro dia enviou todos os seus homens, mas não voltou nenhum, nem mesmo os cães que tinham levado com eles. Desde então ninguém mais voltou a entrar na floresta. Até que, um dia, um caçador solitário apareceu oferecendo-se para ir ver o que tinha acontecido. O Rei aceitou, mas com certas reservas.

Pouco depois de entrar na floresta o cão farejou caça, aproximou-se de uma lagoa, e eis que de dentro da água saiu um braço nu que o apanhou. O caçador, ao ver aquilo, voltou ao castelo e depois, com a ajuda de mais três homens, munidos de baldes, esvaziaram a lagoa. Lá dentro estava um wild man, com os cabelos ruivos, cor de ferro enferrujado, tão compridos que chegavam até aos joelhos. Os homens ataram-no e levaram-no para o castelo. Lá, o Rei mandou prendê-lo numa cela de ferro, no pátio, proibindo qualquer um de o libertar, sob pena de morte, e entregando a chave da cela à Rainha.

O Rei tinha um filho de oito anos que costumava brincar próximo da cela. Certo dia a sua bola dourada caiu lá dentro e ele aproximou-se para pedir a bola de volta. O wild man disse que só a devolvia se ele o libertasse, ao que o menino respondeu que não. No segundo dia o menino voltou, fez a mesma pergunta e obteve a mesma resposta. Ao terceiro dia disse ao prisioneiro: "Mesmo que quisesse, eu não poderia abrir a cela porque não tenho a chave." O outro respondeu: "A chave está debaixo da almofada da tua mãe, tu podes recuperá-la."

O menino queria realmente a sua bola de volta. Voltou ao castelo, roubou a chave e libertou o prisioneiro. Mas ao abrir a porta da cela feriu o seu dedo. O prisioneiro, ao sair, entregou a bola ao seu dono. Quando o menino viu o homem a afastar-se começou a chorar e a chamar por ele: "Wild man, se te fores embora eles vão bater-me." Então o wild man decidiu levá-lo consigo para a floresta.

Já na floresta ele disse ao menino: "Nunca mais irás ver os teus pais, mas eu vou manter-te junto a mim. Por me teres libertado sinto compaixão por ti. Se fizeres tudo o que eu disser, tudo correrá bem. Tenho muito ouro e tesouros, mais do que qualquer um no mundo." Depois de lhe arranjar um lugar para dormir mostrou-lhe uma nascente e disse: "Estás a ver esta nascente dourada? É clara como o cristal e cheia de luz. Eu quero que tu te sentes aqui ao lado e não deixes que nada caia na água, porque se isso acontecer, irás estragá-la. Eu voltarei todas as manhãs para ver se estás a obedecer-me."

No primeiro dia, e como o seu dedo já doía muito, o menino mergulhou-o na água, sem querer, e o dedo ficou dourado, não havendo maneira de o devolver ao seu estado natural. Quando o wild man regressou, chamou a atenção do filho do Rei para o que tinha acontecido, mas desta vez não o castigou. No segundo dia, o menino deixou cair um fio de cabelo, e por mais que quisesse esconder isso do wild man este descobriu e repreendeu-o. Mas, ao terceiro dia o tempo parecia que demorava mais a passar que nos outros dois. O menino começou a olhar fixamente para o seu reflexo na água, não se dando conta de que o cabelo estava quase a tocar a água, o que de facto aconteceu, transformando-o em ouro. Ele tentou tapá-lo com um lenço para que o wild man não o visse e para que ele não fosse punido. Porém o wild man ordenou-lhe que tirasse o lenço e, como resultado, o seu cabelo dourado caiu-lhe pelos ombros. Ao ver o que havia sucedido, o wild man foi implacável: "Tu não podes mais ficar aqui porque não fizeste o que eu te tinha dito. Vai-te embora pelo mundo e então irás aprender o que é pobreza. Mas, como não vejo maldade no teu coração, desejo-te felicidades e vou dar-te uma prenda: sempre que estiveres em dificuldades vem até à orla da floresta e grita: Iron John! Iron John! Iron John! E eu irei em teu auxílio. O meu poder é grande, maior do que tu imaginas e tenho ouro e prata em abundância."

O filho do Rei deixou a floresta e foi mundo a fora, até que encontrou uma grande cidade e depois um castelo. Lá, conseguiu trabalho como ajudante de cozinheiro. Um dia foi obrigado a servir à mesa do Rei; como não queria que vissem o seu cabelo decidiu tapá-lo com um barrete, mas isso não era permitido na presença do Rei. Este ordenou ao rapaz que tirasse o barrete, mas ele retorquiu: "Ah, Senhor, não posso. Tenho uma coisa na minha cabeça." Como resposta o Rei demitiu-o e explusou-o do castelo. Porém, o cozinheiro teve pena dele e enviou-o ao jardineiro.

Certo dia, estava a trabalhar sozinho no jardim, e o calor era tanto que decidiu tirar o barrete. O brilho do sol foi tão intenso que a luz que daí irradiou penetrou no quarto da filha do Rei, e esta veio à janela para saber de onde vinha semelhante luz. Ao ver o rapaz, pediu-lhe que lhe trouxesse flores. O rapaz levou-lhe um ramo de flores silvestres, apesar das recomendações do jardineiro para que levasse à Princesa flores dignas de uma pessoa da sua estirpe, como rosas, por exemplo. Quando o rapaz ia a sair do quarto, ela conseguiu tirar-lhe o barrete, mas ele arrebatou-o das suas mãos. A Princesa decidiu, então, dar-lhe um punhado de moedas de ouro que ele ofereceu ao jardineiro. No segundo dia, a filha do Rei voltou a pedir flores e ele voltou a levar-lhe um ramo de flores do campo, mas não deixou que ela lhe tirasse o barrete. Ela voltou a oferecer-lhe um punhado de moedas de ouro que ele deu ao jardineiro. Ao terceiro dia, passou-se o mesmo, mas ele não aceitou as moedas.

Algum tempo depois, o reino entrou em guerra, e o jovem decidiu que iria combater. Pediu que lhe dessem uma montada, e os guerreiros do Rei deixaram-lhe um pobre cavalo, coxo de uma pata. O rapaz montou no cavalo e dirigiu-se para a floresta. Fez como havia combinado com o Iron John. Este apareceu e perguntou-lhe o que queria. "Eu quero um cavalo de guerra porque tenciono ir combater." O Iron John deu-lhe isso e mais um batalhão de fortes guerreiros. Ele trocou de montada e dirigiu-se para o campo de batalha. O Rei estava quase a ser derrotado, mas o rapaz venceu o inimigo, perseguindo-o até acabar com todos os seus homens. Depois voltou com o batalhão para a floresta. Chamou novamente Iron John agradeceu a sua ajuda e pediu de volta o cavalo que havia trazido do reino.

Quando o Rei voltou para o castelo, a sua filha foi cumprimentá-lo e perguntou-lhe quem poderia ser esse bravo cavaleiro que o havia socorrido. "Não sei." Disse ele. Então, a jovem perguntou ao jardineiro sobre o paradeiro do seu rapaz, ao que ele lhe respondeu: "O rapaz acaba de chegar da guerra." Quando todos o viram começaram a fazer pouco dele e da sua montada, e ele retorquiu: "Eu lutei muito bem. E se eu não tivesse lá estado, não sei o que teria acontecido."

Na tentativa de ajudar a filha a descobrir quem era o tal cavaleiro misterioso, o Rei decidiu organizar um torneio, que duraria três dias, no qual ela iria atirar a maçã dourada aos cavaleiros concorrentes. Desejando participar no festival e apanhar a maçã, o rapaz voltou à floresta e chamou pelo Iron John: "O que tu precisas?" "Quero apanhar a maçã que a filha do Rei vai lançar no torneio." "Já podes considerar tua a maçã, mas vou dar-te mais do que isso, vou dar-te uma armadura encarnada e um cavalo castanho."

Assim, no primeiro dia foi ele quem apanhou a maçã, saindo em seguida, a galope. No outro dia fez o mesmo, mas desta vez envergava uma armadura branca e montava um cavalo branco. Nesse dia o Rei ficou furioso com a atitude do rapaz, e ordenou aos seus homens que, caso o mesmo voltasse a acontecer no dia seguinte, estes deveriam persegui-lo e, se necessário, golpeá-lo com a espada para o deter. Tal como esperado, ele apareceu, com armadura e cavalo pretos, apanhou a maçã e foi-se embora. Mas desta vez os homens do Rei foram no seu encalço, até que um deles chegou mesmo a fazer-lhe um pequeno golpe na perna, com a ponta da espada. O cavalo deu uma volta tão brusca que o rapaz deixou cair o elmo, ficando a sua cabeleira dourada à vista de todos, mas mesmo assim conseguiu fugir.

Quando os homens do Rei voltaram, contaram-lhe o sucedido. A filha resolveu, então, mandar chamar o jardineiro e perguntar-lhe pelo rapaz. Este disse que ele tinha regressado ao trabalho depois de voltar do torneio, de onde só tinha trazido umas maçãs douradas. O Rei chamou o jovem, que apareceu de cabeça tapada, mas antes que alguma coisa pudesse acontecer, a Princesa tirou-lhe o barrete. "Eras tu o cavaleiro que, nos três dias do festival, apanhou as maçãs?" perguntou-lhe o Rei. "Sim, era eu. E também fui eu quem o ajudou a vencer a guerra." "Se és capaz de feitos tão notáveis, de certeza que não és filho do jardineiro. Posso perguntar-te quem é teu pai?" "De certo. O meu pai é um Rei muito notável. E eu tenho muito, muito ouro, mais do que jamais irei precisar." "Pois bem, então tenho uma dívida para contigo. Pede qualquer coisa que esteja em meu poder e ela será tua." O rapaz respondeu: "A sua dívida estará saldada se me der a mão da sua filha em casamento." A Princesa riu-se pelo facto do jovem ser tão directo, voltou-se e deu-lhe um beijo.

Para o casamento foram convidados os pais do rapaz, que ficaram muito felizes de o ver, pois já tinham perdido todas as esperanças disso. Já o banquete ia a meio quando, de repente, a música parou, abriram-se as portas e por elas entrou um Rei magnífico seguido pelo seu séquito. Foi ter com o jovem noivo e deu-lhe um abraço. "Eu sou Iron John, o wild man. Estava enfeitiçado e tu libertaste-me. Como prova de agradecimento todos os meus tesouros serão teus, a partir de agora."

 

II. A crise de identidade masculina do ponto de vista de Robert Bly:

Iron John: A Book About Men é, na opinião do autor, uma obra de cariz iniciático, destinada a todos os homens americanos que se sentem de alguma forma inseguros no seu papel masculino, e que define a forma através da qual esses homens podem recuperar a verdadeira masculinidade, superando assim a crise.

Opondo, de uma forma questionável, as culturas tradicionais – para utilizar o termo do autor – às sociedades ocidentais, Robert Bly defende a revalorização e a prática dos ritos iniciáticos, ainda existentes nas culturas tradicionais, práticas essas que permitem às crianças do sexo masculino progredirem, em termos psicológicos, do estado de criança para o de adulto, tendo como consequência a construção de uma identidade de género masculina mais sólida. Através desta oposição Bly apresenta uma imagem irreal das ditas sociedades tradicionais. Contudo, este é um aspecto que não pretendo aprofundar por uma opção de análise.

 

O diagnóstico da crise de identidade masculina:

Para o autor a história do mundo ocidental apresenta dois eventos que justificam o afastamento dos homens daquilo a que Bly chama de verdadeira masculinidade: o advento do cristianismo e a Revolução Industrial. E uma vez que ele próprio centra a análise da crise da masculinidade no contexto histórico-social americano, salienta ainda um terceiro aspecto, relativo à história dos Estados Unidos, e que assume como decisivo para a consolidação desta crise na actual sociedade americana: o movimento feminista dos anos 60 e 70.( Opto por não criticar aqui esta escolha de Bly uma vez que ela prende-se a aspectos de certa forma complexos e que irei aprofundar nos dois capítulos que se seguem.)

 

O impacto do cristianismo:

O advento do cristianismo marcou, para Bly, o fim da era pagã na Europa e o início de uma forma de raciocinar que anulou o pensamento mítico. Tanto os mitos, as personagens míticas, como todo o simbolismo a estas associado, são factores primordiais para a existência dos ritos de iniciação. Este processo representa uma expansão e abertura, só possíveis de serem alcançadas através da compreensão dos mitos e da adopção de personagens mitológicas como modelos de comportamento. Sem estes factores não é possível a existência de um rito de iniciação, principalmente o masculino, uma vez que as mulheres, segundo Robert Bly, não necessitam deste tipo de práticas, pois tornam-se naturalmente mulheres. Opinião que não compartilho dado que mesmo as ditas culturas tradicionais possuem ritos de iniciação na fase adulta para ambos os sexos. Reduzir o ser mulher à condição biológica, marcada pelo aparecimento da menstruação, reforça a noção de superioridade masculina sobre o sexo oposto e revela-se o produto de uma forma essencialista de entender a dinâmica das identidades de género. E este é o significado político da afirmação de Bly relativamente à necessidade de ritos de passagem para o masculino.

O impacto da Revolução Industrial:

A Revolução Industrial, por sua vez, acarretou o aparecimento do conceito de família nuclear em contraste com o de família alargada, vigente até então, e por consequência, privou a criança do convívio com o seu tio e com o seu avô. Contudo, Robert Bly oculta o facto de que esta mudança de família alargada para nuclear não se deu de uma forma tão radical. Mesmo num país como os Estados Unidos onde as longas distâncias exercem uma influência considerável no convívio entre membros de uma mesma família, ainda é possível encontrar-se comunidades que apresentam um modelo misto. Ou seja, marido, mulher e filhos que, embora vivam numa casa separada, convivem com tios e avós.

Porém, esta alteração na estrutura familiar é, para o autor, de crucial importância, pois todo o rito necessita de um iniciador que coordene o ritual e que guie o iniciando. No caso dos ritos de iniciação Bly defende que este papel cabe principalmente ao avô e em seguida ao tio. A ausência destes dois membros da família impossibilita a realização do ritual, o que é um exagero e reducionismo em termos antropológicos. Bly conclui que uma sociedade sem iniciadores resulta numa sociedade onde proliferam os gangs, os quais representam uma atitude desesperada, por parte dos rapazes, para se auto-iniciarem na fase adulta, uma tentativa de ensinar a auto-estima, a coragem, a lealdade e a disciplina uns aos outros.

Por outro lado, a Revolução Industrial afastou o pai do convívio doméstico, física e/ou espiritualmente, uma vez que cabe a este membro do núcleo familiar o sustento do mesmo. Afastamento físico por o pai trabalhar mais longe de casa e despender grande parte do seu tempo no trabalho. Afastamento psicológico porque os momentos em que se encontra em casa são principalmente para dormir e para comer, não restando espaço para o convívio entre pai e filho.

Um dos efeitos desta ausência da figura paterna é o fortalecimento do laço afectivo que une a mãe e o filho. Robert Bly firma que existe uma tendência natural para que mãe e filho criem um laço afectivo muito forte, uma vez que o segundo depende da mãe para sobreviver, durante os seus primeiros anos, o que explica o complexo de Édipo.

Numa condição como a descrita verificam-se dois outros factores: o primeiro é a insatisfação materna relativa à ausência do marido, o que a leva a procurar no filho um substituto. Neste ponto, Bly menciona a questão do incesto psicológico praticado entre mãe e filho, por indução materna. O segundo é a crise que se gera no filho, quando este tenta quebrar o cordão umbilical para identificar-se com o pai. Como este não está presente cria-se um vazio na psique do filho, o que gera o conceito de "fome de pai"4 (4A esse respeito ver capítulo 4: 92-122, com o título "The hunger for the King in a time with no father.") definido pelo autor.

Bly parte da premissa de que em plenos anos 90 a maioria das mães americanas não trabalham fora de casa e que estas despendem a maior parte do seu tempo com os filhos, uma situação sócio-económica que favorece a relação quotidiana entre mãe e filho, até aos 7 ou 8 anos aproximadamente. Desta forma, a criança é constantemente confrontada com imagens negativas da masculinidade. Imagens estas que são o produto da relação da mãe com o pai, e que revelam a frustração que a mãe sente por ter um marido ausente. Em termos da psique do rapaz, o autor alega que a mãe pressiona o filho para que ele interiorize a forma de sentir feminina, o que vai contra a sua natureza masculina, como sendo uma forma de colmatar o que esta sente pelo marido. A este respeito Robert Bly menciona o facto de a cultura americana primar por uma constante ênfase na imagem do homem adulto incompleto. Este facto, somado ao crescente auto-conhecimento feminino, leva a que as mulheres se vejam no direito de exigir que os seus filhos desenvolvam uma mente mais sensível aos valores femininos, de modo a se tornarem mais carinhosos e mais capazes de satisfazer, sexualmente, as mulheres, comparativamente aos seus pais.

Esta percepção de controle exagerado e cego, que Bly associa à figura materna, e por arrastamento a todas as mulheres, é, segundo ele próprio, identificada no conto com a posse da chave pela mãe. Para a Rainha – a personagem que para Bly representa as mulheres – o Wild Man (Homem Selvagem) vai "des-civilizar" o seu filho, vai deitar por terra todo o trabalho que esta teve em educá-lo. Logo, libertar o prisioneiro é perder o poder e controle sobre o filho. Robert Bly menciona Freud a esse respeito, embora não dê a indicação bibliográfica: "A man should not skip over mutual attraction between himself and his mother if he wants a long life. The mother’s pillow, after all, lies on the bed near where she makes love to your father."5 (5Bly, Robert, 1992: 11) Desta forma, a almofada assume um duplo significado: refere a questão do incesto, uma vez que é na cama que os pais do rapaz dormem, e representa o lugar onde a mãe planeia o futuro ideal para o seu filho.

A relação pai-filho:

De certa forma Bly desculpabiliza a figura paterna, uma vez que a sua ausência não é um acto voluntário, mas sim resultante do facto de o pai ter que trabalhar para sustentar a sua família. Assim, Bly aponta a Revolução Industrial como sendo a real causa para este afastamento.

Segundo o autor, a figura paterna tem sido vítima da história e da sociedade, e o facto é que a TV, como os demais media, veicula uma imagem paterna que se caracteriza pela fraqueza, pelo ridículo, pela indecisão e pela falta de honestidade, no sentido em que não olha a meios para enganar seja a quem for, quando necessário. Este aspecto é extremamente interessante porque Bly justifica a homofobia (O fenómeno da homofobia pode ser entendido como fobia, aversão ou agressão ao semelhante. Em termos de relações sociais significa o medo da homossexualidade que é sentido por indivíduos heterossexuais. Alguns autores como seria Gregory K. Lehne (Kimmel, Michael S., Michael A. Messener, Ed.. Men’s Lives (3ª Ed.). Boston: Allyn and Bacon, 1995: 325-36) e Michael Schwalbe (Schwalbe, Michael. Unloking the Iron Cage: The Men’s Movement, Gender, Politics, and American Culture. New York: Oxford University Press, 1996) referem que a inexistência de uma relação mais profunda entre dois homens heterossexuais se deve ao receio, partilhado por ambos, da homossexualidade.) não como sendo o receio da homossexualidade mas sim como sendo fruto da desconfiança que os mais novos sentem em relação aos mais velhos. "Such suspiction affects a breaking of the community of old and young men. One could feel this distrust deepen in the sixties: ‘never trust anyone over thirty’."

Robert Bly atesta que todo o filho, por volta do 35-40 anos, vai em busca do pai, a fim de, através da sua reaproximação, curar a ferida (Bly afirma que a ausência da figura paterna provocou um vazio na psique do filho, vazio esse que deu origem a uma ferida. A necessidade de reencontrar-se com o seu pai leva a que o filho preencha o vazio existente, curando assim a ferida na sua psique.) que a ausência paterna causou na sua psique. Para Robert Bly, o filho é movido por um anseio biológico, ou seja, todos so filhos, por volta dessa idade, vão em busca dos pais perdidos. De facto, o autor menciona o momento da sua vida em que decidiu aproximar-se do seu pai a fim de apagar a imagem que tinha dele, imagem essa que lhe tinha sido transmitida pela mãe.

A imagem masculina na sociedade americana:

O autor assume uma postura crítica negativa tanto em relação à sociedade americana quanto aos americanos. Ou seja, quando o autor considera necessário chamar a atenção do leitor para os problemas da sociedade americana que facilitaram, por assim dizer, o desenvolvimento da crise da masculinidade, Robert Bly desenvolve todo um discurso de endeusamento das culturas tradicionais, opondo-as à sociedade americana. Da mesma forma, quando o seu objectivo é condenar a forma de agir dos homens americanos, o autor valoriza uma determinada atitude das americanas durante o movimento feminista dos anos 70. É importante não esquecer, porém, que o mesmo autor aponta este movimento feminista como tendo sido o causador da crise masculina.

Women in the 1970s needed to develop what is known in the Indian culture as Kali energy – the ability really to say what they want, to dance wih skulls around their neck, to cut relationships when they need to. Men need to make a parallel connection with the harsh Dionysus energy that the Hindus call Kala (Bly, Robert, 1992: 27).

Soft male – o homem em crise:

A principal crítica feita a Robert Bly seja por parte das feministas seja por parte de outros homens que estudam o men’s movement e a masculinidade, tal como é o caso de Robert Connell ( Connell, Robert. Masculinities. Oxford: Blackwell Publishers, 1995.) baseia-se na forma como o autor define o estereotipo que simboliza a masculinidade em crise, o soft male. Isto porque de acordo com Bly, os homens que se enquadram nesta categoria preocupam-se demais em dar ouvidos às exigências do feminismo dos anos 70, no que diz respeito ao comportamento dos homens em relação às mulheres. O soft male define-se principalmente pela sua passividade e subjugação em relação às mulheres e à sociedade, pela sua incapacidade de expressar os sentimentos. Contudo Bly não admite que nos anos 60 foi um adepto do feminismo, movimento do qual participava com a sua mulher, e que rompeu, de forma brutal, com os valores do feminismo da década seguinte, adoptando um discurso diametralmente oposto.

In the seventies I began to see all over the country a phenomenon that we might call the "soft male". … They’re lovely, valuable people – I like them – they’re not interesting in harming the earth or starting wars. There’s a gentle attitude toward life in their whole being and style of living. But many of these men are not happy. You quikly notice the lack of energy in them. They are life-preserving but not exactly life-living. Ironically, you often see these men with strong women who positively radiate energy. Here we have a finely tuned young man, ecologically superior to his father, sympathetic to the whole harmony of the universe, yet he himself has little vitality to offer (Bly, Robert, 1992: 2-3).

O homem passivo, o homem ingénuo e o homem New Age são imagens que, pela descrição apresentada pelo autor, podem ser consideradas como equivalentes à do soft male. Tal como se pode depreender de algumas passagens da citação acima ("They’re not interesting in harming the earth or starting wars" e "ecologically superior to his father, sympathetic to the whole harmony of the universe.") Robert Bly descreve este soft male como um indivíduo que incorpora alguns dos valores habitualmente associados aos indivíduos adeptos do New Age (No quarto capítulo irei referir-me a este aspecto de uma forma mais detalhada, pelo que opto por não aprofundar esta questão aqui).

. Este facto parece não ter uma importância muito relevante, mas tendo em conta que autores, como por exemplo Susan Faludi (Faludi, Susan. Backlash - the undecklared war against woman. London: Vintage, 1991: 339), identificam o movimento mitopoético, do qual Bly é considerado o mentor, como sendo a vertente New Age do movimento masculino, este facto assume uma importância bem maior, e põe a descoberto uma contradição na forma de agir do autor. A citação abaixo apresentada exemplifica, de forma clara, qual a posição de Robert Bly relativamente aos indivíduos New Age:

I recall talking to an audience of men and women once about this problem of stealing the key. A young man, obviously well trained in New Age modes of operation, said: "Robert, I’m disturbed by this idea of stealing the key. Stealing isn’t right. Couldn’t a group of us just go to the mother and say, ‘Mom, could I have the key back?’ … No mother worth her salt would give the key anyway. If son can’t steal it, he doesn’t deserve it (Bly, Robert, 1992: 12).

Um outro exemplo desta postura contraditória, assumida por Robert Bly, é mencionada por Susan Faludi, ao referir que, se Bly, nos anos 60, defendia a valorização do lado feminino nos homens, de forma a torná-los inteiros, na década de 1970, e com mais ênfase na de 1980, o mesmo Bly nega a valorização do lado feminino, afirmando que, caso esta valorização ocorra, os homens não conseguirão entrar em contacto com a essência da masculinidade: "If someone says to me now, ‘There is something missing on your feminine side’, I say, ‘No, what is missing is the masculine." (Declaração de Robert Bly citada por Susan Faludi (Faludi, 1991: 345)).

Susan Faludi conclui que a verdadeira questão para este autor não é a da busca da verdadeira masculinidade, mas sim a da perda de poder dos homens para as mulheres. Aliás, a autora refere que a causa do backlash (A palavra backlash significa reacção. No contexto do feminismo backlash significa a reacção contra a ascensão da mulher no mercado de trabalho, sendo possível falar-se dele como um fenómeno social.) é, entre outras coisas, económica. Ou seja, nos momentos da história dos Estados Unidos da América em que o número de postos de trabalho ocupados por indivíduos do sexo masculino decai, comparativamente ao número de postos de trabalho femininos, a reacção da sociedade vai no sentido de reverter este processo, dando origem ao backlash. Desta forma, Faludi justifica a sua posição quanto a Robert Bly. É um facto que todos os defeitos das imagens masculinas supracitadas são de carácter psicológico e revelam uma subserviência dos homens em relação às mulheres. Daí que, para o autor, uma imagem masculina, positiva, equivale unicamente a uma posição de poder favorável para o indivíduo do sexo masculino.

 

A cura:

Até aqui tenho feito referência ao que Bly designa como o diagnóstico da crise da masculinidade. Embora, em termos de estrutura do livro, a distinção entre diagnóstico e cura não seja feita de forma tão marcada, para efeitos de análise da obra optei por este método.

Esse processo assenta em três pilares principais: a prática dos ritos iniciáticos, o uso da mitologia e a definição da essência da masculinidade.

A prática dos ritos é vista por Bly como sendo a única via possível para que os homens recuperem a verdadeira masculinidade e para que progridam no sentido de se tornarem psicologicamente adultos. A mitologia, por sua vez, estrutura os ritos, ou seja: os contos mitológicos, e a análise da simbologia neles contida, devem ser encarados como modelos paradigmáticos de comportamento e de forma de pensar pela comunidade envolvida nos ritos. Neste sentido, Bly justifica a pertinência de Iron John: A Book About Men, uma vez que a obra contém as duas vertentes funcionais da mitologia: por um lado, é a análise de um conto mitológico, na opinião do autor, bem como da simbologia nele contida; por outro, introduz a personagem mitológica do Homem Selvagem, cujo modo de actuar deve ser entendido como paradigmático, tanto para os que estão a ser iniciados como para os iniciadores. Quanto à definição da essência da masculinidade, Bly alega que, através deste processo de análise do conto de Iron John, se chega não só à percepção da dinâmica que o rito de iniciação da masculinidade deve conter na sociedade americana, mas, simultaneamente, o leitor apreende o conceito de verdadeira masculinidade. Percebe, afinal, o que são os arquétipos ("Na doutrina de Jung (psicólogo suíço, 1875-1961) os arquétipos correspondem, de acordo com a teoria estóica da alma universal concebida como origem da alma individual, às imagens ancestrais e simbólicas materializadas nas lendas e mitos da humanidade e constituem o inconsciente colectivo que se revela ao indivíduo nos sonhos, delírios e algumas formas de arte." Dicionário Universal da Língua Portuguesa. Texto Editora, Lisboa. 1995: 144) do Rei, do Guerreiro e do Agricultor, arquétipos estes que integram o todo da psique masculina.

 

O rito:

Iron John: A Book About Men pode ser definido como a descrição de um rito de iniciação masculino, mas não da mesma forma como podemos encontrar em variadas obras antropológicas. Isto porque nestas obras há a conjugação de um trabalho físico e psicológico pelo qual passa o iniciando. O rito é algo de concreto, na medida em que permite ao espectador ter a noção das etapas que o compõem, através da simples observação. Neste caso, não existem etapas físicas pelas quais passa o iniciando, as etapas existentes são psicológicas, são a nível mental e ocorrem através de um processo se reflexão e de meditação desenvolvido pelo iniciando. A explicação para este facto pode estar relacionada com as condições em que o rito se processa, pelo facto de o iniciando em causa ser um homem adulto. Esta é a razão pela qual há que distinguir o trabalho etnográfico da especulação antropológica, que é o caso de Iron John.

A análise do livro revelou que Bly procura evidenciar o seu conhecimento das teorias psicológicas de Freud e Jung, principalmente, bem como da mitologia mundial, ao arrolar uma série de mitos e de personagens mitológicas pertencentes a culturas tão distintas como a dos índios nativos do seu país, a da Europa pré-clássica e medieval e a hindu. Porém, esta preocupação excessiva leva-o a descontextualizar este corpus mitológico e os ritos, a ele muitas vezes associados, ao mesmo tempo que se abstém de aprofundar algumas ideias, o que faz ressaltar o carácter generalista da obra. O diálogo constante, e por vezes pouco claro, entre a psicologia e a mitologia, desenvolvido por Bly, é entendido por Robert Connell como sendo o produto de uma interpretação de senso comum da psicologia, e neste caso mais precisamente da teoria de Jung a respeito da construção dos arquétipos.

In the absense of the discipline of clinical case studies, ‘archetypes’ are fatally easy to find. Jung’s later books found them in esoteric arts and world religions, and his followers have scoured other mythological systems. This results in deeply confused texts such as Marshall Bethal’s "The mythic male", an erratic hunt through Greco-Roman myths, taken utterly out of context, for male gods who might personify modern ‘modes of masculine consciousness’. Iron John is a Jungian work in exactly this vein, except that Robert Bly finds his archetypes in a folk tale recast by the Brothers Grimm rather than more conventionally in the pages of Ovid. Bly too ignores the cultural origins of his tale, and scrambles its interpretation with notions of ‘Zeus energy’ and even wilder borrowings from oral cultures (Connell , Robert, 1995:13).

Bly defende a sua posição, quanto à pertinência da aplicação do rito de iniciação na sociedade ocidental, da seguinte forma: "Our work then as men and women is not to only free ourselves from family cages and collective mind sets, but to release transcendent beings from imprisionment and trance"(Bly, Robert, 1992:233). Da mesma forma, para a sociedade norte-americana Bly afirma que:

The recovery of some form of initiation is essential to the culture. The United States has undergone an unmistakable decline since 1950, and I believe that if we do not find a third road besides the two mentioned here, the decline will continue. We have the grandiose road, taken by junk-bond dealers, high rollers, and the owners of private jets; and we have the depresed road, taken by some long-term alcoholics, single mothers below the poverty line, crack addicts, and fatherless men (Ibidem 35).

Por conseguinte, o processo de iniciação representa, para o autor, um segundo nascimento, através do qual a mente incorpora os poderes espirituais que foram desenvolvidos séculos antes, numa alusão à mitologia de origem européia e oriental. A obra de Mircea Eliade assume uma grande importância na elaboração e justificativa do modelo explicativo do processo de iniciação, e do uso da mitologia, na perspectiva de Bly. Segundo a sua interpretação da teoria de Eliade, os processos iniciáticos representam, antes de mais, a revelação do sagrado aos iniciandos, posto que estes passam a ter acesso à vida religiosa (Bly entende que o acesso à simbologia dos mitos conduz à religião, uma vez que a religião é uma representação colectiva, tal como a mitologia. Tendo isso em conta, até que ponto é legítima a pluri utilização de mitos, provenientes de culturas distintas, em termos espaciais e temporais, que Robert Bly aqui apresenta? No meu entender este aspecto vem reforçar a já mencionada descontextualização da mitologia), e neste caso em particular, através do ensinamento de mitos, histórias e canções que incorporam os valores masculinos e espirituais. De acordo com a análise de variadíssimos ritos iniciáticos existentes em diferentes culturas, Bly afirma ser possível encontrar-se uma estrutura comum a todos eles que é composta pelo corte com os pais, pela ida do noviço para a floresta, deserto ou espaço semelhante, e pela ferida que o ancião provoca no noviço.

Bly salienta ainda que as iniciações são de vários tipos, que comportam modelos, sequências de rituais e ensinamentos distintos. Em todas elas as sequências dos estágios iniciáticos são lineares, o que lhe permite identificar cinco etapas comuns ao processo de iniciação. A primeira e a segunda etapas são a ligação e posterior ruptura com a mãe e com o pai. A estas etapas segue-se a da chegada do mentor, ou da "mãe masculina", que ajuda a criança a reconstruir a ponte para a sua própria grandiosidade ou essência, onde se subentende a masculinidade. O processo de aprendizagem, o contacto com o Guerreiro e o posterior casamento com a Rainha, ou a Holy Woman (Mulher Sagrada), são as etapas finais. Em todo este processo Bly salienta que o papel do ancião é o de conferir ao iniciando uma certa segurança, que é invisível e não verbal, e que o ajuda a visualizar a sua verdadeira face.

Os mitos:

Se o processo de iniciação representa o contacto com a religiosidade tal como Bly definiu, a função do conhecimento mitológico é a de tornar o indivíduo que a possui capaz de visualizar determinados deuses e deusas, que neste processo são entendidos como paradigmas de comportamento. Conhecimento esse que se mostrou incompatível com o cristianismo e mais tarde com o desenvolvimento do pensamento científico.

O mito de Iron John:

A personagem principal desta obra é o Homem Selvagem e o autor fundamenta a sua escolha no epílogo, onde aborda a importância da figura do Homem Selvagem em várias culturas e em tempos históricos distintos. "Tales of Lord of Animals or the Master of Hunt are elsewhere present in Mediterranean, African, Siberian, Aboriginal, Chinese, North European, and American Indian cultures." (Bly, Robert, 1992: 238) E que "The Wild Man, or Lord of Animals, has been associated with initiation of young men for at least fourteen thousand years."(Ibidem 239)

Em algumas passagens do texto, o Homem Selvagem é referido como sendo o guia do jovem, cuja função é orientá-lo no processo de iniciação. Trata-se de uma figura mitológica que está mais próxima da imagem de um xamã ou de um mestre Zen, não tendo nada a ver com a imagem popularmente aceite do homem selvagem, bárbaro, ou homem pré-histórico. Não se trata de uma figura cujo comportamento seja exemplo a seguir pelo iniciando. "The Wild Man is a better guide in some ways to that pain our inner child is, precisely because he is not a child. Because he is not a child he knows stories, and can lead us into the personal suffering and through it." (Ibidem 226)

Todavia, esta definição apresenta algumas contradições posto que em outras passagens do livro o Homem Selvagem é definido como sendo uma personagem paradigmática, que contém em si muito do que é a essência da masculinidade (a sexualidade, a valorização do corpo, a representação do que é natural e selvagem, aqui mais no sentido de uma força quase indomável), além de conter os aspectos que Bly entende que devem ser incorporados pelos homens americanos, tais como: a verdadeira amizade – aquela que deve ser fomentada entre os homens (Novamente a referência à homofobia. Robert Bly é tido como um autor main stream, donde esta negação do sentido que a homofobia assume para a masculinidade não deve ser entendido como algo descabido, antes pelo contrário. Aliás, a respeito da homossexualidade o mesmo autor, no prefácio do livro, página X refere que: "most of the language in this book speaks to heterosexual men but does not exclude homosexual men. It wasn’t until the eighteenth century that people ever used the term homosexual; before that time gay men were understood simply as a part of the large community of men. The mythology as I see it does not make a big distinction between homosexual and heterosexual men.") - a grandesa, a espontaneidade, e a coragem para seguir os seus desejos mais profundos. Para além disso o Homem Selvagem é aquela personagem que fará com que os homens passem do mundo da mãe para o do pai.

O rito de iniciação masculina:

Posto que a busca da verdadeira masculinidade passa pelo reencontro do indivíduo com o Homem Selvagem, o rito de iniciação masculina, idealizado por Bly, contém uma dinâmica semelhante à do conto. Ou seja, com o intuito de precisar quais as etapas a serem seguidas pelos americanos na prática do rito, este autor, ao mesmo tempo que analisa, com um certo detalhe, todas as passagens do conto, traça um paralelo entre os acontecimentos pelos quais passa o filho do Rei e as etapas a serem percorridas pelo indivíduo, onde a etapa final é o reencontro com o Homem Selvagem. Assim sendo, o rito de iniciação masculina definido por Robert Bly, e de certa forma aplicado nos encontros do movimento mitopoético, divide-se em sete etapas: a ferida, o trabalho na cozinha, a criação do jardim, a ida para a guerra, os três cavalos (o castanho, o branco e o negro), a ferida provocada pelo Rei e o casamento com a Princesa, e o reencontro com o Homem Selvagem (Tal como se verifica, a identificação das sete etapas do rito segue a ordem do conto. Esta foi a razão que me levou a optar por iniciar este capítulo da forma como o fiz. Tendo em conta que a compreensão da análise do argumento político de Bly, neste momento, implica um conhecimento mínimo da dinâmica do conto, o facto de este já ter sido introduzido facilita esta análise.)

 

Primeira etapa: a ferida:

A etapa da ferida corresponde à passagem do conto em que o rapaz se fere num dedo ao abrir a porta da cela. Bly lembra que, tanto a ferida como a dor são inerentes ao processo de iniciação, e que existem dois tipos de feridas: a mitológica, logo impessoal, e a real, logo pessoal. A ferida real pode ser uma ferida física e/ou psicológica. Neste caso, as razões que motivaram o aparecimento da ferida no indivíduo prendem-se à história da sua vida, mas a ferida na masculinidade, está profundamente ligada ao papel da criança no seio familiar, ao tipo de relação que esta desenvolve com os seus pais.

A respeito das feridas estritamente psicológicas, Bly refere a pressão materna para que o filho corresponda às suas expectativas e a forma como este se sente caso perceba que não consegue satisfazer os desejos da sua mãe, e a relação que o filho tem com o pai, retomando o conceito de fome de pai. No que concerne às feridas físicas, menciona que geralmente são a exteriorização das feridas psicológicas, o que significa que nos momentos em que o filho falha perante um dos seus pais estes respondem com uma forma física de violência, para além de mencionar a existência de abusos sexuais tanto por parte do pai como da mãe.

A função da ferida, no processo de iniciação masculina, é a de provocar no iniciando a consciência de si próprio, levá-lo a identificar a ferida, pela percepção da dor e, em seguida, a reflectir sobre as suas causas. Neste processo, o homem toma consciência do papel da mãe e da sociedade na origem da ferida. Toma consciência da ferida do seu pai, uma vez que se apercebe de que a ausência deste não é voluntária mas sim fruto de uma exigência da sociedade, já que ser pai é sustentar a mulher e os filhos, cuidar para que nada lhes falte. É a percepção da ferida do pai que move os filhos na sua direcção. Ao afirmar que o processo de iniciação induz o filho a partir em busca do pai, com o objectivo de vê-lo como ele é e não mais através dos olhos da sua mãe, Bly entende que há um factor cultural e não biológico, a predominar. Entrando em contradição, tal como se pode observar na citação seguinte:

It takes a while for a son to overcome these early negative views of the father. The psyche holds on tenaciously to these early perceptions. Idealization of the mother or obsession with her, liking her or hating her, may last until the son is thirty, or thirthy-five, forty. Somewhere around forty or forty-five a movement toward the father takes place naturally – a desire to see him more clearly and to draw closer to him. This happens unexplainably, almost as if on a biological timetable (Bly, Robert, 1992:25).

Segunda etapa: o trabalho na cozinha:

A segunda etapa equivale ao período compreendido entre a saída do rapaz da floresta e o fim da sua estadia na cozinha. Nesta etapa o iniciando vai percorrer a Estrada de Cinzas e este caminho vai levá-lo a morrer para o mundo materno (O que Bly quer dizer com morrer para o mundo materno é que, nesta etapa do processo, o iniciando toma consciência dos danos causados pela mãe, no que respeita à construção da sua identidade masculina e principalmente no que respeita à sua relação com o pai, e decide cortar o laço que naturalmente o unia à mãe.). Esta escolha pela Estrada de Cinzas pode também estar relacionada com o processo de Katabasis, que significa uma queda em termos sócio-económicos, ou pode simplesmente revelar uma tomada de consciência da necessidade de romper o laço com o mundo materno. Após morrer o iniciando torna-se cinza e, tal como a Fénix, renasce para o mundo do pai.

When ‘katabasis’ happens, a man no longer feels like a special person. He is not. … People know immediately when you are falling or have fallen. … Your inner psychology changes as an old shame surfaces, one walks with head and feels it’s all inevitable. The inner masculine self changes. While one is still grandiose and naïve, a young man lives inside, shiny-faced, expectant, hopeful, dandified, a prince. After the Descent begins, an old man takes the place of the prince. To one’s amazement a helpless, anti-social, brittle, isolated derelict takes over. ( Bly, Robert, 1992: 70)

Katabasis and ashes are a little different. We could say that a man finds katabasis only through dropping, poverty, abrupt change in social class; and prision is a traditional place to experience both katabasis and ashes. But a man may keep his job and family and still experience ashes if he knows what he is doing. (Ibidem 83-84)

Esta etapa é essencialmente marcada por um declínio psicológico que leva à meditação e ao contacto do iniciando consigo próprio, é o que Bly identifica como o estado de cinzas, um período de letargia que induz à reflexão.

We surmise, then, that when a man accepts the Descent as a way to move to the father’s house, he learns to look at the death side of things, he glances down to the rat’s hole, which is also the snake’s hole, and he accepts the snake rather than the bird as his animal. The father in the middle-class household may own the car and the credit cards, but the mother lives longer, and comes back from the cemetery after the father is buried. The son feels a pull to identify with the mother’s sturdiness and, beyond that, with the vibrant energy of the Great Mother.

Initiation asks the son to move his love energy away from the attractive mother to the relatively unattractive serpent father. All that is ashes work. (Bly, Robert, 1992: 90 e 91)

Terceira etapa: a criação do jardim:

A etapa seguinte constitui a criação do jardim, que no conto corresponde ao período entre a saída do trabalho na cozinha até à ida para a guerra.

Iron John wants the young man to experience the garden. Once the garden – which may take ten years to develop – has been experienced, then we could say that the young man has begun to honor his own soul, has learned to become a lover, and has learned to dance. (Ibidem 145)

O jardim é descrito como um lugar à parte, wallen garden, onde reina a paz, a calma, e que é iluminado pelo sol. Um lugar hermético que permite ao iniciando recuperar do trabalho na cozinha. Equivale a um segundo período de meditação que dá início ao processo de ascensão, no qual o indivíduo encontra a Holy Woman (Mulher Sagrada), que representa o verdadeiro amor. O trabalho no jardim implica numa reflexão, ao nível da razão e da emoção, que conduz à redescoberta da masculinidade e ao encontro com a "alma gémea". Bly acredita que a Mulher Sagrada surge somente na vida de um homem se, e quando, ele tiver encontrado o equilíbrio dentro de si, em termos de masculinidade.

Quarta etapa: a ida para a guerra:

As duas etapas anteriores levaram o iniciando a tomar consciência das feridas relacionadas com a masculinidade, e geraram nele um sentimento de revolta que o conduz à necessidade de mudança. Dá-se, então, o contacto do indivíduo com o Guerreiro. Robert Bly constrói uma metáfora entre o castelo e a psique masculina para explicar como ocorre a batalha que irá culminar com o renascimento do Inner King (Rei Interno) símbolo da masculinidade.

No castelo habita um Rei (Inner King) que é protegido pelo Guerreiro. Quando a criança nasce o Rei Interno é forte porque o castelo nunca foi invadido e o Guerreiro nunca foi ferido. Todas as vezes que os adultos agridem a criança indefesa, invadem o seu castelo e o Guerreiro debilita-se, até ao momento em que morre, deixando o Rei Interno desprotegido e, consequentemente, enfraquecido. Segundo Bly, os americanos em crise têm dentro de si um Rei morto e estão afastados do contacto com o Guerreiro.

Romper o laço com a mãe, reencontrar a paz no contacto com o pai, o trabalho de auto-conhecimento, que transporta para o nível consciente todos os traumas sofridos pela criança, tudo isto gera no indivíduo um profundo desejo de mudança, este facto motiva-o para a batalha, elemento essencial para que a mudança ocorra realmente. Uma batalha ganha, como acontece no conto, implica a existência de um Guerreiro forte. Portanto, a redescoberta do Guerreiro simboliza o início da consolidação da masculinidade.

Quinta etapa: os três cavalos:

O aspecto mais importante para Robert Bly, nesta quinta etapa, é o significado que assumem as cores dos cavalos (o castanho, que representa o encarnado, o branco e o negro) na consolidação da identidade de género masculina, dado que a cada uma destas três cores corresponde um estágio do desenvolvimento do comportamento social masculino.

Assim, o primeiro estágio é o do rapaz vermelho, o mais imaturo dos três tipos psicológicos, já que as suas acções são movidas pelo ímpeto e não pela razão.

When a young man is red, he shows his anger, he shouts at people, he flares up like a match with a sulfur tip, he flushes red with anger, he fights for what is his, stops being passive, walks on balls of his feet, is a red hawk, is fierce. Of course no one trusts a red man very far. (Bly, Robert, 1992: 203)

O segundo estágio, o do homem branco, é o oposto do anterior, visto que o homem age como sendo puro, luta só pelo que entende ser o correcto e o honesto. Um tipo de homem que, de acordo com o autor, é muitas vezes satirizado pelos outros, embora Bly faça uma ressalva quanto a este estágio da personalidade masculina:

The danger with the white knight stage in our culture is that he is often insufferable because he has not lived through the red. White knights in our culture support the cold war and project bad redness out onto the American Indians, or red communists, or wild women, or black men. If a man hasn’t lived through the red stage, he is a struck white knight who will characteristically set up a false war with some concretized dragon, such as poverty or drugs. The Bush-Dukakis debate was the sad debate of two stuck white knignts. Such debates will be remarkably borring. (Bly, Robert, 1992: 204)

O último dos três estágios é o do homem negro, o qual é marcado por uma postura de não aceitação tanto dos complexos como das culpas que a sociedade, de um modo geral, imputa ao sexo masculino. Quando um indivíduo atinge esta etapa pode considerar-se como estando no fim do seu processo de iniciação. Desta forma Bly conclui que:

I don’t think we should consider one horse better than another, all we could say is that none should be skipped. We need three skills, for each horse has its own sort of gait; each horse shies at different things, responds to a rider differently. … If we take nothing else away from the Iron John story, we could usefully take this idea that the young male moves from red intensity to white engagement to black humanity. Each man is given three horses that we ride at various times of our lives; we fall off and get back on. (Ibidem 205)

Seguindo a lógica, por mim várias vezes referida (da generalização da mitologia e do simbolismo a ela associado), Robert Bly analisa o significado que as três cores têm na mitologia dos povos de origem européia, africana e asiática. Inicia esta análise aludindo ao conto da Branca de Neve, onde a Rainha expressa o desejo de ter uma filha que seja branca como a neve, com os olhos e os cabelos negros como o ébano, e os lábios encarnados como o sangue. Menciona ainda que a mesma trilogia está presente em contos folclóricos russos, alemães, finlandeses, e outros.

Por fim, enuncia os significados que estas cores assumem para todas as culturas. Ao encarnado associa o sangue menstrual, o sangue que sai da ferida, o nascimento, o sacrifício humano e animal, a terra vermelha e o culto da Terra. O branco é associado ao sémen – o princípio masculino, à virilidade, à virgindade, à pureza das noivas, das crianças, à moral, à saliva, à água dos lagos, rios e mares e ao leite. E o negro Bly associa-o à noite e à escuridão, à depressão, à maldade, ao diabo, aos rituais de morte, à bruxaria e à magia, ao sofrimento, às doenças, à falta de pureza, aos frutos negros, à lama dos rios e ao carvão. Este autor refere também que para os alquimistas europeus, bem como para os egípcios, o negro simbolizava a matéria-prima, o branco a purificação, e o vermelho o sangue, que simboliza a vida.

Sexta e sétima etapas: a ferida do Rei, o casamento e o encontro com o Homem Selvagem:

A sexta etapa deste ritual consiste em receber a ferida provocada pelos homens do Rei, para que o iniciando se encontre com o Rei e se case com a Princesa. Aqui assiste-se a mais um momento de introspecção, que resulta no reatar do laço que liga a humanidade à natureza. Um dos postulados de Bly é que a civilização ocidental perdeu o contacto com a natureza, tornou-se materialista e esqueceu a espiritualidade que a natureza encerra em si, o que representa um paradoxo uma vez que despreza o lado ecológico do homem New Age. Logo, defende que o reencontro com a natureza é de extrema importância para o equilíbrio psicológico do indivíduo. Esta é a razão pela qual muitos dos encontros ligados ao movimento mitopoético devam ser realizados em locais próximos a florestas.

Nesta etapa do ritual, o indivíduo já recuperou a confiança na sua masculinidade e adquiriu o conhecimento necessário para se defender das possíveis agressões, viveu um período particularmente activo – a descoberta do Guerreiro, a batalha e a participação no torneio - sofreu a ferida na perna provocada pelos homens do Rei - que implica numa dificuldade de locomoção. Robert Bly entende que o facto de ser obrigado a andar mais devagar leva o iniciando a reflectir sobre todo o processo, a que o indivíduo consiga fortalecer os guerreiros do seu castelo, tornando eminente o renascimento do Rei Interno. Neste momento, o iniciando estará frente a frente com o Rei, terá conseguido redescobrir o Homem Selvagem, e reequilibrar a sua psique. Isto implica que ele conseguiu fazer renascer toda a comunidade que habitava o seu castelo. "A whole community of beings is what is called a grown man." (Bly, Robert, 1992: 227)

O encontro com Iron John:

Quando o reequilíbrio é atingido o indivíduo descobre a verdadeira masculinidade e por consequência o Iron John. Robert Bly finaliza todo este processo referindo o significado do Homem Selvagem:

The wild man is part of each man that was once in touch with wilderness and wild animals has sunk down below the water of the mind, out of sight, below human memory. Covered with hair now, it looks as if it were an animal itself. The Wild Man in our wedding scene says in effect: "A strong power forced me by enchantment to live under the water until a young man appeared who was ready to undergo the discipline and go through the suffering that you have gone through. Now that you have done that, I can appear as I am – a Lord." (Ibidem 237)

Ou seja, Bly afirma acreditar que, em tempos remotos, os homens estiveram em contacto com a natureza vivendo em harmonia com ela. O cristianismo, A Revolução Industrial e o feminismo dos anos 70 afastaram o homem americano deste contacto, enfeitiçaram o Iron John e transformaram-no num Homem Selvagem. Para que tudo volte a ser como antes, onde não havia homens femininos nem mulheres masculinas (Para Bly a noção de homem feminino e de mulher masculina não implica a ideia de homossexualidade, mas sim a ideia de que existem homens onde predomina a vertente feminina e mulheres onde predomina a vertente masculina. Um exemplo de homem feminino é o soft man, e um exemplo de mulher masculina é a mulher executiva bem sucedida. O que está em jogo é a definição dos tradicionais papeis sociais para os sexos e a forma como eles são definidos actualmente), é necessário que estes homens em crise percorram o mesmo caminho que o filho do Rei percorreu e que consigam quebrar o feitiço.

Portanto, os indivíduos que conseguiram atingir o estágio final onde, no dia do casamento com a Mulher Sagrada, reencontraram o Iron John, terão recuperado as três partes que completam o todo da psique masculina: o Rei, que simboliza o sagrado e o político, o Guerreiro, que simboliza a capacidade de luta, e o Agricultor, que simboliza o amante, aquele que fornece a gratificação sensual, a força sexual, e a fecundidade.

Assim, tal como tive a oportunidade de demonstrar, Iron John: A Book About Men é uma obra cujo objectivo é responder aos anseios daqueles americanos que não conseguem definir claramente a identidade de género masculina, uma vez que Robert Bly tenta não só apontar as causas desta insegurança, mas também indicar os passos a serem dados para que a verdadeira masculinidade seja recuperada, através da defesa e da adopção dos tradicionais papéis sociais de ambos os sexos.

Desde já é possível antever o debate que se segue. Ou seja, a análise apresentada chama a atenção para alguns aspectos mais polémicos contidos nos artigos que seleccionei, os quais analiso no capítulo seguinte, confrontando-os entre si e com o livro.

 


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